Capítulo 3

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Meus olhos ameaçam saltar das órbitas, de tão crescente é o meu espanto.

— Como você ainda pode estar vivo? — questiono, estranhando o modo como a minha voz soa mais aguda do que o normal. — E por que diabos essa noite infernal só consegue se tornar ainda pior?

Uma atividade frenética se inicia em minhas costas. Passageiros desesperados e que se unem para avaliar o policial morto, seguranças da própria estação que surgem das portas laterais como se durante todo aquele tempo estivessem esperando por uma entrada triunfal, e aqueles que ignoram o chão decorado com um generoso rastro de sangue e desatam em uma corrida às cegas, afim de fugir de qualquer futura confusão e deparando-se com mais corpos. Não os culpo, fugir é exatamente o que eu deveria ter feito.

Minha política de sobrevivência sempre foi bem clara: Se algo terrível está acontecendo, e não é problema meu, não devo me envolver. O meu erro foi hesitar com receio de que isso pudesse prejudicar ainda mais o meu repentino estado de choque. O homem ferido aos meus pés tem parte na culpa deste fato.

Por falar nele, após um silêncio que não dura mais do que um batimento cardíaco, ele resmunga um longo gemido. Aquele olho que antes me observava, agora está fechando-se com pálpebras trêmulas.

— Apenas me ajude a levantar, não deixe que cheguem perto... Preciso... Não posso chamar a atenção. — Sua voz é rouca, carregada de vulnerabilidade e dor. Mesmo escutá-lo falar é agoniante demais para mim.

Aparentemente, além do rosto gravemente machucado e do visível ferimento sangrento na altura do seu estômago, as pancadas não se resumem apenas às partes superiores do corpo do sujeito. Uma grande elevação em sua coxa esquerda é assombrosa o suficiente para retorcer as minhas entranhas em uma crescente náusea, e nem mesmo o tecido apertado do jeans escuro pode esconder o modo como o seu joelho direito parece compactado ao chão, esmagado sob tecidos e carne.

A surra, pelo que me permito analisar, é parte de um sobressalente pacote de humilhação a qual este homem fora submetido. Seja lá em quais problemas ele se meteu, não consigo enxergar em que mundo uma punição onde cada pedaço do seu corpo é reduzido a estilhaços pode ser aceito como um pagamento.

Diante de tamanha brutalidade, sou tomada por uma forte torrente de compaixão. Mesmo que a minha conduta siga um caminho contrário às decisões que tomo, dessa vez, sinto que o certo está longe de ser ignorar e seguir adiante. Por isso, eu me abaixo com cautela e com o mesmo cuidado e atenção, levo a mão do desconhecido até o meu ombro, posicionando-o melhor para que eu possa apoiá-lo.

Quando o homem está de pé e instável como um recém-nascido, percebo que a minha intenção de apoia-lo pela axila em meu ombro não funcionará corretamente. Talvez a sua altura alcance um metro e noventa e cinco — ou os ombros largos, que sustentam músculos fortes e volumosos, tensionados sob as vestimentas pesadas, sirvam de ilusão para complementar o seu tamanho — mas, comparado aos meus um metro e sessenta, e a compleição franzina com que sou agraciada, tenho certa dificuldade para controlar as minhas próprias caretas de dor.

Desconcertantemente frio e trêmulo, ele arrasta uma das pernas e se equilibra naquela que tem o joelho estranho. O desconhecido inspira com dificuldade e abre o olho saudável.

— Me ajude a chegar em qualquer lugar isolado... Longe de... Longe da atenção das pessoas.

Um relativo número de pessoas acaba de descer a íngreme escadaria de ferro, seus semblantes variando desde a previsível preocupação a uma curiosidade desmedida. Seguindo o meu olhar, o homem parece inquieto, e se apoia em mim com tanta força que os seus dedos — mais curvados e inflexíveis do que o normal — cavam dolorosamente o meu ombro.

Regras do Prazer (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora