Capítulo 4

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— Isso não era bem o que eu esperava para uma sexta-feira a noite — resmunga Marjorie, bufando com o esforço de sustentar o peso do homem desconhecido entre nós.

— Se serve de consolo — dou um grunhido em resposta ao forte estalo em meus ombros, onde o braço do homem se apoia — eu teria preferido sofrer com um episódio triste de Stranger Things na companhia de um generoso pote de sorvete do que tentar salvar a vida de um desconhecido.

Puxando o ar ameno para meus pulmões com uma dificultosa tragada, encaro a fachada iluminada do hospital, lembrando-me que já não havia uma brisa fria envolvendo-nos quando Marjorie estacionou o carro rente ao meio-fio da loja de Lingerie para nos salvar, dez minutos atrás.

O homem desmaiado com a cabeça pendendo morbidamente para o lado, no entanto, permanecia frio e inerte. Minha amiga me ajudou a colocá-lo em seu carro, e eu não poderia estar mais agradecida por não ouvir qualquer queixa de sua parte sobre todo sangue que encharcava o homem e suas roupas. Durante o trajeto, tive que contar cada detalhe desta terrível noite, incluindo o episódio com Samuel.

Ela não pareceu tão surpresa ao escutar todas as minhas lamentações, limitando-se apenas em arquear a sobrancelha nos momentos em que mencionava o fim do meu casamento perfeito, e parecendo muito mais concentrada em saber sobre o desconhecido e como eu me sentia.

— Nada que uma dose de Jack Daniels não resolva — respondi secamente, ainda que sentisse o remorso machucando o meu peito.

Eu tenho certeza de que se dirigir a toda velocidade para chegar até o hospital não estivesse tomando toda a sua atenção, minha cabeça estaria agora latejando por ter de escutar todos os seus sermões. Não que minha amiga costume agir no papel de minha mãe, mas acredito que me ver sentindo a necessidade de salvar a vida de um desconhecido — principalmente depois de quase perder a minha — não seja algo tão bem visto quando colocado em prática.

Há uma tênue diferença entre ser solidária e arriscar o próprio pescoço pelo de outros. Talvez me torne ainda mais egoísta estar neste exato momento lamentando por ter dado ouvidos às súplicas deste homem, e ainda arrastado a única pessoa que confio para um território que não conhecemos os riscos.

Marjorie tropeça no pavimento e rosna baixinho, e por um instante, posso jurar que ela vai atirar o homem com todo o seu peso entorpercido para mim, mas se limita em afastar o braço que pesava em seus ombros para abraçá-lo pela cintura.

— Esse é o problema, Betty! Você sempre encontra um jeito de ferrar com a sua noite. Caramba, o que custa você ser uma mulher normal que trabalha, come e transa? Não necessariamente nessa ordem, mas...

O homem entre nós abruptamente ergue a sua cabeça para tossir o sangue em sua boca, e ambas quase despencamos com o solavanco de seu corpo frio e esmorecido.

— Mas... — continua Marjorie com um grunhido. — Você prefere se envolver em um assassinato em massa, ligar para a sua melhor amiga no meio da noite e fingir que está salvando a vida de um Deus grego para que ela se sinta curiosa o bastante para deixar o maravilhoso conforto de sua cama, apenas para que possa acudir você. E, caramba, Betty... Isso não se faz!

Bufo, exasperada. — Eu não podia deixar ele sozinho naquela calçada!

— Podia sim! — ela retruca. — Porque Bettany Wilson se acha superior demais para ajudar alguém que precisa de socorro imediato, e nós duas sabemos muito bem disso. Você podia simplesmente fugir e deixar que outros cuidassem disso. Não seria a primeira vez...

Parando sob a fachada luminosa do hospital, ela subitamente se vira para mim, e seus olhos escuros como a noite me fitam com uma pequena cintilação de culpa. Marjorie move a cabeça para se livrar dos fios de cabelos castanho-dourados que roçam em suas bochechas sardentas, e suspira.

Regras do Prazer (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora