21 de outubro, 2016

30 5 3
                                    


2016, 21 de outubro

Fraqueza.

Um substantivo tão meramente fútil, e que entretanto carrega uma tempestade de significados.
Quando lê essa palavra, geralmente imagina uma pessoa incapaz, sendo escrava das próprias condições físicas ou psicológicas, vulnerável aos obstáculos que lhe cercam a cada segundo, muitas vezes beirando a frustração. Correto?

Era exatamente assim que Harry se sentia. Vulnerável, fraco. Um simples fardo a ser carregado por todos aqueles que com ele conviviam.

Esse tipo de pensamento o fazia praguejar por não ter a capacidade de fechar os olhos se livrar de todos os seus problemas em um passe de mágica, como desejava.

Harry oscilava um pequeno pingente em seu dedo indicador, sentindo o frio típico da estação pousando em seu rosto empalidecido pelas frestas da janela. Vestia apenas uma camiseta surrada branca e uma calça jeans azul, sem muito luxo.

Os olhos esverdeados acompanhavam a extremidade pontiaguda da pequena pedra Jasmim viajando pelos ares de um lado para o outro num ritmo desregulado. Era como um relógio pendular, mas diferente deste, o pequeno minério não demarcava o passar do tempo, e sim o tédio que se acumulava nos ombros do garoto cacheado.

Era cansativo para ele não se contentar com o que lhe estava disponível, ainda mais quando se tratava de sua própria vida.
Com recorrência perguntava a si mesmo se seria possível recuperar o antigo Harry, perdido no passado em meio aos escombros de suas catástrofes internas.

Objetivo inalcançável, pensava. E seria eufemismo dizer que sua vida estava virada do avesso.

Levantou o tronco com certa dificuldade para visualizar a paisagem matinal através da vidraça embaçada, conseguindo enxergar de relance um garoto entregando jornais na vizinhança em uma bicicleta vermelha, jogando um deles na grama de seu quintal. Como já alertara a previsão do tempo dias atrás, os primeiros resquícios de geada do outono se manifestavam.
Bufou fortemente e mais uma vez deitou-se desajeitado no travesseiro manchado. A última coisa que Harry gostaria de fazer era se levantar para assistir às aulas no colégio, e ele poderia faltar facilmente se não tivesse Anne, uma mãe coruja que o vigiava 24 horas por dia.

Largou o pingente sobre os lençóis e voltou seu olhar para o teto repleto de marcas de infiltração. Quando mais novo, jurava enxergar uma girafa nadando em um mar de cascavéis, e embora soubesse que tudo era fruto de sua imaginação fértil juvenil, ainda conseguia ter o mesmo devaneio.

Riu nasalmente com a breve memória, até que seu sorriso foi desmanchado com o som de pés pisoteando as escadas rangentes daquela casa tão corriqueira quanto um céu nublado.
Um ruído estralado na porta do quarto revelou uma senhora de meia idade vestindo um robe verde limão com alguns fios de cabelo caídos pelo rosto. Suas olheiras deduravam as horas perdidas de sono na última noite.

-Harry, querido - a mulher iniciou sua sentença com uma voz rouca e num tom quase inaudível - Já está na hora de sair da cama. Gemma já está de pé.

O garoto não olhou em momento algum nos olhos da mãe, que mal parecia incomodada com o fato. Talvez porque já estivesse acostumada, talvez por seu filho estar enfrentando uma engrenagem de hormônios da adolescência, ou pelo fato de que Harry simplesmente parou de ser expressivo faziam muitos anos.

-O primeiro período é educação física, mãe. Não preciso ir. - respondeu com a maior indiferença que conseguiu exprimir, mas a dor de pronunciar tais palavras ainda era nítida em sua voz.

Ele se sentia horrível por isso; se sentia péssimo por não conseguir ser forte mesmo depois de quase  seis anos, e tudo ficava pior quando suas fraquezas emocionais eram tão evidentes aos olhos alheios.

Uma expressão temerosa era perceptível na face de Anne, que disfarçou com um sorriso iluminado, quase falso, mas tão visto pelos demais que nem se podia notar a diferença.

-O inverno está chegando, logo poderemos ver a coisa que você mais gosta nesse mundo! - exclamou a mulher, dando vida ao cômodo cinzento e abatido.

-A coisa que eu mais gosto no mundo é ficar aqui lendo. Aliás, quero pedir mais um livro para a senhora. - Harry finalmente virou o rosto para avaliar Anne. Ambos eram tão fisicamente parecidos, mas com diferenças inestimáveis em suas formas de atinar o cotidiano.

Seus olhares se fixaram mutuamente por algum tempo, duas almas ansiando por qualquer demonstração de vida uma da outra, assim como um espelho abandonado aguarda por um novo reflexo. Poucos segundos que foram mais do que o suficiente para reviver novamente um pequeno sorriso no rosto do mais novo.

- A Megera Domada. Só falta esse para a minha coleção de Shakespeare ficar completa. - completou hesitante. Apesar de já ter passado de seu décimo sexto aniversário convivendo com as mesmas pessoas, ainda se sentia inseguro. Outra de suas incontáveis fraquezas idiotas.

-Você ama ler esses livros de gente velha, não é? - Anne indagou com humor. O clima já não era tão frio e morto nesse momento, agora era possível sentir o calor de duas auras que por fim, ainda interagiam entre si.

-São meus preciosos. Antigos ou não, podem ser lidos pelos olhos que os merecem, e não apenas por anciões. - o cacheado brincou, dessa vez sem ser sarcástico; pela primeira vez na semana.

Ambos sorriram com o máximo de sinceridade que conseguiam. Harry quase nunca sorria.

-Vou preparar seu café. Quer ajuda para descer? - a mãe perguntou com um tom cauteloso.

-Não precisa. - Harry pigarreou e se contorceu para enfim sentar-se, demonstrando que já estava ativo.

Anne assentiu com a cabeça e se retirou do quarto, deixando-o mais uma vez sozinho. Sem ninguém o julgando, não haviam motivos para fingir estar bem, pelo menos por enquanto.

Ele estava praguejando; sempre praguejava. Mais um dia idiota, com pessoas idiotas, indo a lugares idiotas. Ele próprio se considerava um idiota.

Nos pés da cama, Harry se espichou para alcançar um par de muletas metálicas, nas quais suas mãos rapidamente se encaixaram.

Com um pouco de dificuldade, o garoto se impulsionou para longe dos cobertores e se estabilizou ficando de pé. Após soltar uma lufada de ar como quem diz "você consegue", mancou em passos lentos e descompassados através do quarto. Seus passos e as extensões barulhentas marcavam o chão de madeira escura, o que dava garantia à Anne, mesmo no andar de baixo, de que ele estava a caminho.

Ao chegar na escada sinuosa, sentiu uma pequena pontada em seus nervos do peito. Era o que ele sempre sentia.
Ele nunca admitia, mas tinha medo daqueles degraus. De qualquer escada, na verdade. Mais uma fraqueza para a lista.
Sua mãe e sua irmã prometeram colocar uma rampa ou algum tipo de elevador no estabelecimento, ou até mesmo mudar o quarto de Harry para que assim não tivessem mais complicações. Mas ele insistia que não precisava, justamente para não ser taxado de fraco. Ele detestava isso.

Ele simplesmente detestava com todas as suas poucas forças.

H.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Oct 17, 2017 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Let It Snow - L.SOnde histórias criam vida. Descubra agora