Amanheceu, como amanhece sempre, um dia normal como todos os outros, o que há de tão incomum neste dia? É o fato de que eu não vou para o trabalho, uma pequena livraria familiar na qual eu sou um livreiro.
Exclusivamente hoje, meus patrões me mandaram para um treinamento de vendas.
-Precisamos sempre nos aprimorar - disseram
-Eu concordo! - Respondi.
Estava eu 7:00 da manhã dentro do ônibus, lendo Clarice Lispector, entretido com a vida triste e sofrida da pobre Nordestina Macabéa, quando ela entra no ônibus, não a personagem desventurosa de Clarice, mas uma senhora que não sei o nome, nem idade, muito menos nível acadêmico, a mulher agarrada em sua bolsa marrom de couro gasto, como se a qualquer momento alguém pudesse lhe tirar o bem precioso.
Assenta-se ao meu lado e, como se não bastasse a invasão, a ponta do meu casaco fica em baixo dela me aprisionando, porém ela parece não perceber. Então, decido não incomodá-la afeiçoei-me a ela, e claro, como qualquer pessoa normal, tratei de julgá-la.
Uns 45 anos, pensei,
deve estar indo trabalhar na casa de madâme, conclui,
mas não sei o seu nome, percebi,
com certeza deve ser Maria, afirmei, tem nome mais brasileiro que este?
Então está decidido, ela é Maria. E eu acho que Maria não dormiu muito bem essa noite, pois suas olheiras estão muito marcadas causando um contraste escuro em sua pele branca, o que será que lhe aconteceu?
Imagino que, talvez, Maria tenha tido uma noite ruim, assolada por pertubadores pesadelos em que ela não consegue pagar o aluguel, ou quem sabe passou a madrugada as claras cuidando do filho caçula febril, ou foi somente a falta de energia e o incomodo de pernilongos sanguessugas que tiraram sua paz, bom, seja qual for o motivo ela está deveras cansada, pois se eu não estiver enganado ela acaba de pegar no sono, devo ter ficado algum tempo em meus devaneios ou ela realmente dormiu bem rápido, totalmente alheia a minha presença, dormia um cochilo tranquilo e despreocupado, analiso Maria e reparo que ela não usa aliança, porque não me contou Maria? Talvez por não poder ler meus pensamentos.
Imaginei que fosse casada há quem sabe uns 23 anos, com um senhor Tiago, um porteiro bigodudo de uma simpátia acolhedora.
Será que ela não é casada, será que é viúva ou esta separada? Talvez só tenha perdido a aliança em uma segunda feira de trabalho duro, enquanto lavava as roupas de Dona Flávia, sua patroa, que apesar de um pouco autoritária é bastante gentil.
Maria ainda está com os olhos fechados, apesar do saculejar do ônibus, seus cabelos que vão cachedos até os ombros estão soltos, mostram que ainda lhe resta alguma vaidade e também posso sentir um leve toque floral vindo dela e que realmemte é bem agradável.
Maria sorri, oh meu Deus, ela sorriu, um sorriso sutil, mas ele estava lá, lhe enfeitando os lábios.
Parece um agradecimento tímido pelo elogio ou pode ser um simples sonho de cochilo, ou quem sabe uma lembrança que lhe passou a mente, lembrou-se talvez de sua vizinha e amiga Márcia fazendo-lhe rir enquanto as duas cozinhavam juntas em sua casa.
Finalmente Maria acorda, parece satisfeita com o breve descanço, parece se sentir renovada com um cochilo de vinte minutos, ela se levanta libertando o meu casaco, ajeita sua modesta roupa, coloca o cabelo atrás das orelhas e puxa a cigarra, o ônibus para e ela desce sem se despedir e sem nem ao menos olhar pra trás, ela só se vai.
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Devaneios de um cotidiano
Short StoryA vida de um ponto de vista um pouco diferente