Prólogo

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"Só mais um pouco. Só mais um pouco", repito na minha cabeça.

Aumento o ritmo da corrida, isso faz minha panturrilha queimar por conta do esforço. A chuva cai abundantemente, molhando minha roupa e se misturando com as lágrimas.

Talvez, fugir agora não tenha sido a coisa mais sensata a se fazer, mas meu estado perturbado não permitiu que eu raciocinasse direito.Eu só queira sumir e simplesmente esquecer o que aconteceu. Quem sabe, assim, a dor suma e essa revolta diminua.

Por que permiti que fizessem isso?

Como me permiti confiar nele?

Entrona rodoviária e corro até o portão de embarque, ignorando os olhares desconfiados que me lançam. Não sei até onde vou com apenas uma passagem de ida e sem dinheiro no bolso, mas voltar para aquele maldito orfanato não é uma opção.

Entro no ônibus e sento na última poltrona. Puxo o casaco, embrulhando-me no tecido encharcado. Meus dentes fazem um barulho alto por conta do tremor involuntário.

Tá com fio? Uma cabecinha aponta por cima do banco da frente. Uma bagunça de cachos escuros e olhos expressivos. Engulo as emoções e fito a pequena criança.

Um pou..pouquinho. Ela some da minha vista e aparece logo depois.

Toma, moça. Pode ficar com o meu cobetor. Tão inocente e completa de bondade. Deus deveria fazer das crianças anjos eternos, pois crescer e descobrir as maldades do mundo é desolador.

Não precisa, pequena princesa. Eu já me esquento.

De repente, um homem aparece ao lado da poltrona da menina.

Rafaela, o que está fazendo?

Ajudando a moça, titio. Ele se vira para mim e levanta uma sobrancelha, como se perguntasse "o que essa maluca está fazendo?"

Com certeza, minha aparência não é das melhores. Um arrepio de frio me atinge, fazendo com que eu me encolha ainda mais.

Você está congelando.— É mais um reprimenda do que uma observação. Vamos dar um jeito nisso. Revira sua bolsa e me entrega algumas roupas. Vá se trocar. Senão, vai acabar tendo uma hipotermia.

Não retruco. Pego tudo e corro para o pequeno banheiro.Assim que termino de me vestir, o ônibus começa a se movimentar. Deixo um suspiro de alivio sair.

Tenho que dobrar três vezes a barra da calça de moletom, e a camiseta chega nos meus joelhos, mas eu estou aquecida. Dou uma arrumada nos cabelos, porém, não consigo disfarçar os olhos inchados e as olheiras de algumas noites sem dormir. Saio e estendo as peças molhadas na poltrona vazia ao lado da minha. Eu me aconchego no meu canto e suspiro, agradecida por sentir meu corpo esquentar.

Um cobertor é jogado em cima de mim e o mesmo homem me encara.

Se cubra e descanse...Ele me olha interrogativamente, esperando que eu continue.

Belinda respondo baixinho.

Belinda. Espero que não se arrependa de estar fugindo seja lá de quem.

Não vou falo com toda firmeza que consigo.

Tome. O estranho me estende um pacote grande de salgadinho e uma lata de refrigerante. Não me mexo. Pode pegar.

Não é da pequena? A bagunça de cachos aparece.

Podecomê, moça, minha barriguinha tá cheinha.Ela me oferece um sorriso sincero e eu retribuo com um dos meus. Aceito o alimento.

Depois de devorar o salgadinho e tomar metade do refrigerante, eu me enrolo na pequena manta. Não quero fechar os olhos, estou com medo de acordar naquele lugar que me tirou todas as esperanças, mas o cansaço prevalece e a inconsciência me alcança.

Não sei por quanto tempo eu durmo, mas acordo com um leve chacoalhão.

Belinda... Abro os olhos assustada. Calma! Só queria avisar que chegamos.

Levanto e entrego o cobertor a ele.

Obrigada. Olho para o meu jeans e para o casaco marrom que ainda estão úmidos. Torço a boca. Vou trocar de roupa e te devolvo as suas.

Não precisa.— Elesorri, revelando dentes brancos e alinhados. Pode ficar com elas. Só me diz uma coisa:para onde você está indo?

Não sei respondo categórica. Sua boca se frisa numa linha pálida.

Tenho uma pousada perto daqui. Gostaria que me acompanhasse. Quando decidir o que fazer, poderá ir ao seu destino.

Por que está me ajudando? Não parou para pensar que eu posso ser uma pessoa perigosa? Ele joga a cabeça para trás e solta uma gargalhada.

Não sei se a risada dele me alegra ou me deprime. Porém, o som é agradável e, por um segundo, sinto-me menos só. Neste momento, minha vida é uma confusão, cheia de incertezas e medo. Medo de seguir e medo de voltar. Medo de não conseguir ser tudo aquilo que desejo. E, principalmente, medo de me tornar tudo aquilo que desprezo. Por algum motivo que não sei explicar, não sinto medo dele. Tem algo neste desconhecido, com o olhar bondoso e seu sorriso verdadeiro, que grita "amigo".

Você realmente parece muito perigosa! Fecho a cara com o comentário.

Você me ajudou, me alimentou, mas não disse seu nome. Quem me garante que você não é uma pessoa perigosa? — Algo em mim diz que posso acreditar nele, mas minha experiência de vida não permite que eu confie tão facilmente. Suas feições ficam sérias.

Meu nome é Dante Giacomoni. Fui buscar minha sobrinha na casa dos avós. E, definitivamente, não sou perigoso. Fico envergonhada.

Ok. Desculpa.

Não sei quem ele é,mas quais opções eu tenho?

A pequena garotinha grita pelo tio.Ele relanceia meu rosto mais uma vez e indicao caminho.

No momento em que piso na calçada e contemplo o céu totalmente azul, muitas dúvidas preenchem minha cabeça.Resolvo trancafiá-las por enquanto, mais tarde pensarei com calma qual será meu próximo passo.

Acontece que não tem um próximo passo. Acabo fazendo daquela cidade meu lar e Dante se torna mais que um conhecido; ele se torna minha família.

Ele é o único, além de mim, que entende porque a Belinda inocente e sonhadora morre e dá vida a uma mulher cheia de barreiras e camadas.

Se tem algo que a dor faz, é abrir nossos olhos para o mundo.

MEU DESTINO É VOCÊ - LIVRO II (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora