Spring

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   Todos temos sonhos e desejos que esperamos ser alcançáveis, entretanto para mim, isso era um trabalho árduo, praticamente inatingível. Não haviam boas hipóteses ao meu favor, sempre tive que abaixar minha cabeça e renegar todos as minhas expectativas, para ser o que sempre quiseram que eu fosse. No atual mundo, até os nossos próprios pensamentos podem nos enganar, quem dirá os outros seres desse universo e era por esse motivo que eu desconfiava de todos. Tudo por causa desse sangue que corre em minhas veias, era um sangue contaminado por décadas de meus ancestrais, algo que para muitos significa orgulho, para mim somente significa desgraça. Era um amontado, grotesco e nojento de desgraças.

As lendas que correm por todo o reino eram sagradas, religiosas. Podíamos sentir a energia no ar que respirávamos, emanando de todos os lugares, das árvores, da gélida chuva, dos animais e dos outros seres de Lumière, a terra dos libertos. Somos dominadores da magia, fonte de anos e anos de interações com a mãe sagrada, a nossa energia vital. Assim como todas as lendas, acreditávamos em sua honrosa devoção à terra embaixo de nós e em resposta ela foi abraçada pelo mundo, envolvida pela natureza e desapareceu em um ato de sacrifício há décadas, sua entrega deu a todos os seus fiéis a capacidade de gerar sua própria energia, o que foi passado de geração em geração. A mãe sagrada jamais retornou e existe a lenda que ela retornará como um de nós e será mais poderosa do que todos os outros, podendo então nos salvar.

Nos salvar da guerra.

A guerra entre mundos, fruto do ódio e da discórdia trazida de ambas as partes. Esse outro mundo era Stenos, seres que se denominavam Kiyos, eram fisicamente pequenos, contudo ágeis, conseguindo formar com os próprios corpos círculos impenetráveis, causando um estrago por todos os lugares em que passavam. Contudo em Lumière seus olhos não tinham função, eles eram cegos. Foi explicado que era causado pela transgressão do planeta deles para o nosso, era uma falha, um erro no sistema de seus corpos, e uma vantagem para nós, sabíamos que quanto mais claro estava o dia, era esse o melhor momento para atacarmos, na escuridão eles tinham mais chances.

Morgon, o rei dos Kiyos desejava a nossa magia e sua maior intenção era controlar todos os seres do universo a todo custo, então entramos em guerra. Há séculos estamos lutando um contra o outro, na espera de um dia sermos prósperos de novo. Em Lumieré o mundo é dividido em castas, quatro castas dos líderes, herdeiros da mãe sagrada, além dos híbridos, misturas perdidas de nosso sangue. Os que conseguiam fundir seus corpos com os de outros animais eram chamados de Morfos, essa sua habilidade era extremamente importante, eram ótimos em estratégia e distração. Ectos eram manipuladores de sangue, conseguiam controlar tanto o próprio sangue, quanto os dos outros, mas por um curto período de tempo, eram perfeitos para momentos instantâneos. Os que controlavam o gelo eram os Springs, minha família, éramos bom em ser precisos e por fim, Flames, controladores de fogo.

Controladores de fogo, tinham uma rincha contra controladores de gelo. Dizem que a causa era uma traição antiga, entretanto as duas famílias culpam uma a outra, como se não soubessem ao certo quem começou essa disputa, mas perduram o ódio de geração para geração e com certeza isso afetava todo o contexto histórico que enfrentávamos no momento.

   Bateram à porta com fraqueza, era um som específico e identifico rapidamente ser Christopher, meu irmão mais novo.

   — Samantha! — ele exclama atrás da porta. — Posso entrar?

   — Entre. — respondo-o.

   Sento sobre a cama com as pernas cruzadas e vejo-o abrir a porta, com os cantos da boca contorcidos em um sorriso juvenil. Vê-lo era animador, Christopher era a minha pessoa, tínhamos um ao outro, da mesma forma como o universo tem todos os seres existentes nele. Éramos como inteiros, que se completavam. Em seu nascimento lembro de ser a última a vê-lo, ele era tão pequeno, praticamente cabia na palma das mãos e assim que eu o seguro, parece que finalmente meu mundo se tornou mais completo, parecia que eu tinha algum sentido, mesmo que eu não tivesse.

   — O que te trouxe aqui, piquitucho? — eu pergunto gentilmente.

   Piquitucho foi o apelido que eu dei para ele em um dia de inverno, quando ele veio em minha direção, chorando pelo motivo de não conseguir terminar sua montanha de neve por causa do seu tamanho. Ele sempre foi pequeno.

   — Vim te ver. — ele responde, jogando-se sobre a cama e sentando ao meu lado. — E graças a sagrada, porque você Samantha, decidi desaparecer aqui dentro.

   Acotovelo, com uma pequena força, suas costelas e Christopher ri, empurrando meu braço para longe.

   — O sol está para iluminar o quarto, Chris. — respondo-o e levanto da cama, espreguiçando o corpo inteiro. — Acho normal eu ainda estar aqui.

   Christopher se arrasta para à beirada da cama e deita as costas sobre o colchão, passando os braços atrás da cabeça e encarando o teto. Ele sempre fazia isso, era sua forma de dizer que gostava de ficar conversando com alguém.

   — Se você diz. — ele fala em desdém, com um sorriso largo no rosto.

   Abro o armário em um único movimento, agacho até a última gaveta e retiro de dentro uma calça preta. Levanto-me e em cima no cabideiro, pego uma camiseta lisa, larga e com bolsos na lateral, era a minha favorita, tinha um lírio-da-aranha-vermelha bordado nas mangas e esse era o seu diferencial. Abro a gaveta menor e pego uma meia cinza, para combinar com os tênis que eu sempre usava. Seguro tudo em meus ombros e fecho o armário. Observo Christopher, ele estava na mesma posição, deitado, apenas observando o teto, eu sabia que tinha algo a mais na sua visita e ele não falaria se eu não investigasse, dessa forma, encosto-me no armário e suspiro pesado, cruzando os braços sobre o peito e o perguntando.

   — Tem certeza que foi por isso que veio aqui? — digo. — Eu não descer, era o que te preocupava?

   — Você sabe que não. — ele murmura, ainda olhando para o teto. — Amanhã você irá embora.

   Amanhã eu faço dezoito anos.

   Todos que fizessem dezoito anos, eram convocados para o treinamento para as tropas da linha frontal, era a divisa entre Lumière e Stenos, era o lugar aonde os Kiyos conseguiam atravessar para o nosso planeta. A linha frontal era perigosa, contudo era importante que todos defendessem essa base, atrasando os Kiyos para que pudéssemos proteger as outras gerações que estavam em crescimento, isso contava com Christopher, ele tinha mais três anos antes que entrasse na maioridade. A nossa diferença é que nosso pai protegeria seu único herdeiro, provavelmente não o mandaria para o treinamento, assim como não mandou Sarah, nossa irmã mais velha, talentosa, objetiva e principalmente, extremamente habilidosa com seus poderes.

   Quanto a mim, era só a filha do meio, com um problema em meus genes, um problema que fazia eu ser descartável, pelo meu pai, pela minha mãe e por todos outros que sabiam sobre a minha condição, menos Christopher, ele nunca me descartou.

   — E o que está te preocupando? — pergunto despretensiosamente, dando de ombros e com a boca contorcida em um sorriso amigável.

   — Você sabe o que é.

   Ele diz se apoiando nos cotovelos e me olhando nos olhos.

   — Chris, já conversamos.

Guerra entre corações Where stories live. Discover now