Dama da Noite

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|3º Conto: Dama da Noite|

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Carlos apertou o passo.
Estava na rua do Belladonna. A floricultura abandonada tinha má fama por causa da morte que ocorrera ali uma vez. Depois disso, foi apenas uma questão de tempo para as pessoas começarem a inventar histórias acerca do lugar e seus mistérios. Ele próprio havia tirado suas conclusões.

Acreditava em espíritos e criaturas malignas sim, e só estava passando ali em frente porque estava atrasado para seu turno de porteiro num condomínio não muito longe.

Mas sabe, Carlos tem razão em temer assombrações. Afinal, foram elas que mataram o antigo dono da floricultura. Elas não. Ela. Uma única manifestação do mal.

Todos os dias de manhã bem cedo o Tio Tomas acordava. Se ajeitava, punha uma roupa surrada para não ter medo de se sujar e seguia para sua querida floricultura, que carinhosamente chamara de Belladonna, em homenagem à sua falecida esposa, e às belas flores, ao mesmo tempo.

Ele já tinha nas costas o peso da idade. Apesar disso, quase voltava a ser criança quando o assunto era flores. Ele as amava, amava seu perfume e a beleza de suas cores.

Amava mais ainda Belladonna, que além de carregar o nome de sua mulher, significava também o fruto de muito esforço do homem, pois teve de trabalhar por muitos anos, debaixo de sol e chuva para ter o que tinha. Era graças às suas poupanças que conseguira comprar o velho cemitério onde construíra sua floricultura.

Achou estranho? Calma, calma. Ele obviamente tirou as lápides, arrumou tudo o que precisava e deixou o lugar com outra aparência. O lugar que antes era sinônimo tristeza e dor agora trazia alegria para as crianças e presentes para as donzelas. É verdade essa história. Todo dia de manhã, logo quando Tomas abria as portas da Belladonna, as brincalhonas crianças vinham para desejar-lhe bom dia e reinvidicar bonitas margaridas que ele dava de bom coração.
De tardezinha havia sempre um cavalheiro ou outro que comprava lindas rosas para presentear suas amadas, e o senhor sorria com as lindas histórias de amor que se desenrolavam delicadas como as pétalas de suas flores.

Alma boa, a desse Tio Tomas. Sempre andou na linha, nunca trespassou a lei, era em suma, um homem direito. O único erro dele foi trazer a um terreno amaldiçoado a inquietude da alegria e das risadas. Você sabe, os mortos querem descansar. Querem ser embalados no terrível choro da dor, e decorados com flores saudosas. Eles gostam disso.

O jardim de plantio ficava no mesmo terreno que a floricultura, e certo dia, lá estava o Tio Tomas a cavocar a terra para plantar algumas marias-sem-vergonha quando um súbito e adocicado cheiro, quase inebriante, lhe invadiu as narinas. Ele inalou mais, deliciado com o aroma. Mas quanto mais cheirava, mais percebia o quanto o cheiro doce se assemelhava ao de frutas podres.

Acompanhado do forte aroma podre, veio uma voz, quase ancestral, arranhar os tímpanos do Tio Tomas:

Dai aos mortos o que deles é por direito... a Dama espera por aqueles que interferem no que não se deve.

Um calafrio percorreu sua espinha, e o pobre senhor se afastou tremendo do local. Olhou em volta, mas não viu ninguém.
Não era muito religioso, mas do caminho do jardim até a floricultura ele foi rezando, sem parar em momento algum.

A partir desse dia, por todo o terreno da floricultura e jardim começaram a crescer as conhecidas damas-da-noite, flores muito usadas em velórios e em visitas de familiares a túmulos.

A princípio, esse fato passou despercebido por Tio Tomas, mas quando uma dessas flores irrompeu do azulejo, bem no meio da loja , ele começou a arrancá-las pela raiz e descartar. Todas elas.

Não gostava desse tipo de flor. Sempre preferiu aquelas cujas pétalas carregavam cores vibrantes e tons variados, mas essa flor, com seu branco triste e deprimente, definitivamente não era do agrado dele. O fazia se lembrar da esposa que perdeu, e do filho que nunca pôde ter. O fazia se lembrar de morte e agonia.

É por isso que nunca as cultivou em seu jardim nem vendeu na Belladonna, e a súbita aparição dessas plantas brancas o desagradou grandemente.
Tentando entender o porquê da epidemia branca em seu espaço, acabou associando-as ao costume das pessoa de pôr flores nos túmulos. Afinal, ali já havia sido um cemitério, não é? Quem sabe o solo tenha absorvido-as, e só estejam germinando agora... nunca se sabe.

Mas apesar de arrancar e arrancar, todo dia nasciam mais. Então ele parou e pensou em como poderia tirar proveito da situação, já que de eliminar as flores ele não era capaz.

Notou que nos últimos tempos, mais e mais pessoas vinham à sua floricultura com o intuito de comprar essas terríveis flores.
Muitas mortes na vizinhança, ele ficou sabendo. Um fato muito triste, mas que para o bom homem poderia resultar num lucro maior, bastaria vendê-las. Ainda mais agora que elas cresciam descontroladamente na Belladonna. Que mal faria?

E assim ele fez.

Sempre que chegava um cliente interessado nas brancas, ele saia pelo jardim coletando várias e várias, até formar um buquê, que ele vendia por um preço baixíssimo, apenas pelo prazer de se ver livre das malditas.

Quase uma semana havia se passado desde que Tio Tomas decidira vender as damas-da-noite em sua floricultura. Os negócios iam muito bem, e era a quinta vez que ele fechava a loja mais tarde por causa das pessoas que não paravam de chegar.

Ele olhou para a escuridão através da janela. Já passava das sete da noite, e só agora que ele estava fechando a Belladonna. Com tudo trancado, ele se dirigiu ao jardim para apagar as luzes da casinha de ferramentas, e ao fazer isso, ele se viu na total escuridão.

Um arrepio percorreu sua espinha, o que ele resolveu ignorar. Tateando as paredes, ele procurou se orientar em direção ao portão, mas esbarrou em algo macio e... cheiroso?

Uma sensação de urgência se instalou dentro de si, e como mágica, todas as damas-da-noite so seu jardim se iluminaram, brancas, tornando a noite quase dia.

De frente para o pobre homem estava uma enorme mulher, pálida como a lua e amedrontadora em toda a sua glória fria. Sua longas vestes brancas esbarravam no chão, e seu olhar era como mil agulhas perfurando a pele.

Em sua mão, jazia uma dama-da-noite.

- Me surpreende seu desgosto por estas plantas. Ela são tão belas... - Ela direcionou seu olhar ao homem. - Sabe por que têm esse nome?

Sentindo que a pergunta não era exatamente retórica, Tomas forçou uma resposta sofrida através de sua garganta. - N-não...

Ela sorriu, e ar pareceu se tornar mais gélido. - Porque são dedicadas a mim. A Dama. O Ceifador. A Morte.

E então Tomas sentiu como se membro por membro seu fosse desligado, e prostrou-se de joelhos, aos pés da mulher.

- Como os seres humanos são fracos. - Ela o olhou com desgosto. - Está na sua hora de partir, jardineiro.

Carlos suspirou com alívio ao virar a esquina. Enfim longe daquela rua agourenta. Imagine, que horrível morrer como o velho da floricultura! Engasgado com damas-da-noite, moribundo e jogado no chão.

Mas Carlos nunca se dignaria a morrer assim. Queria morrer belo e bem vestido, tal como estava agora. Um fim trágico como o do dono do Belladonna era ruim demais para ele, e um tanto assustador também.

Finalmente chegou ao prédio onde trabalhava. Enfiou as mãos no bolso para pegar a chave, mas veja que irônico, ao invés do pequeno objeto metálico, ele encontrou uma dama-da-noite. E ele não se lembrava de ter guardado uma ali.

Para o seu espanto, ela começou a brilhar.

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Depois da Morte [Contos]Onde histórias criam vida. Descubra agora