Fora um dia árduo para Mateus. Como sempre, estava sobrecarregado de tarefas. Documentos a averiguar e então assinar, clientes para atender, burocracia de seus superiores com as quais ele tinha que lidar, entre tantas outras coisas.Todo dia era assim, mas hoje, talvez por ser a véspera de suas férias, seus superiores quiseram tirar o máximo de proveito dele que conseguiam.
Mas todo esse esforço valeu a pena. No final do expediente, Mateus recebeu seu pagamento, e confirmou com alegria que de fato recebera o aumento prometido por sua chefe.
Ele saiu do escritório eufórico, mal notando o chuvisco que molhava suas roupas.
Que estava cansado, ah, isso estava. Mal se aguentava de pé, e quase que caiu no sono quando se sentou no carro, mas a notícia lhe dava ânimo para lutar contra o sono e ir depressa para casa, contar à sua esposa e filhos sobre o aumento que recebera.Mateus ligou o carro e saiu do estacionamento da empresa, pegando infelizmente um trânsito desesperador ao atingir a rodovia. Todo mundo estava saindo do trabalho àquela hora, e com a temporada de férias se aproximando, estavam todos tão ansioso para chegar em casa quanto ele.
Foi estressante, mas eventualmente ele alcançou a rodovia, e o tráfego mostrou-se mais esparso. Àquela altura, o chuvisco havia progredido para uma tempestade. Ficava difícil de enxergar, ainda mais porque estava muito tarde.
A motivação do trabalhador naquele momento era contar as boas novas par aa família, e anunciar que a prometida viagem aconteceria.
Sim! Seria maravilhoso, não só para os filhos, mas para ele também. Enfim relaxar, curtir o sol em alguma praia da Bahia. Mal podia esperar.
Bem, é claro que ele teria que deixar uma parcela do celular novo do filho atrasar, mas tudo tinha sido calculado. Estaria preparado para os juros que viriam.Perdido em seus próprios pensamentos, Mateus a comoção carros à sua frente. Seguiu dirigindo em frente, sem ver que o caminhão da outra pista perdera o controle.
Ele também não viu quando o baú do caminhão caiu na pista onde ele estava. Devia estar mesmo com muito sono, desatento.O impacto foi violento, mas pelo menos, ele morreu rápido. Não teve tempo de sofrer.
***
Mateus levantou-se do asfalto, ainda tonto pelo impacto da batida. Olhou para o próprio corpo, e não encontrando ferimentos, aliviou-se imensamente.
Levando em conta o estado de seu carro, era um milagre ter sobrevivido. Só não fazia muito sentido o carro ter batido de frente, e ele ter sido jogado para o asfalto atrás do carro.Odiava as aulas de Física no colégio, mas não era tão idiota a ponto de perceber que havia algo de errado.
Fosse como fosse, agradeceu aos céus que o carro tinha seguro, senão teria que dizer adeus à tão sonhada viagem.
— Isso não importa mais — Uma voz se fez ouvir atrás dele.
Quando se virou, sua visão de mundo se amplificou um pouco. Só agora notava que o mundo parecia meio… morto. A rodovia estava antes cheia de carros, e as luzes dos estabelecimentos ao redor brilhavam ofuscantes.
Agora, estava tudo vazio. Parecia um planeta abandonado.Da origem da voz, erguia-se um ser de uns quatro metros de altura. Mateus o olhou apavorado em sua magnitude. O ser era todo encoberto por uma capa, a única coisa que se fazia visível eram suas mãos.
Cinzentas, esfareladas. Era inacreditável que fossem capaz de segurar uma foice tão grande.O ser andava devagar em sua direção, e quando falava, sua voz ancestral ecoava no coração de Mateus, e ecoava memórias de um passado que ele não viveu. De um futuro que ele desconhecia.
— Eu sou Morte, o fim de todas as coisas, e o início de todas elas.
— M-m-moOorte? — Ele gaguejou. Sua voz fraca soava ridícula quando comparada à da entidade.
Morte agora tinha parado à certa distância do humano. Ele era minúsculo perto dela. Apenas uma vida, como tantas outras. Mas Morte já esteve no lugar dele.
— E-então eu…? — E se virou lentamente em direção ao carro.
Mateus tinha medo de dar as costas para a Morte e talvez ser desrespeitoso ou algo do tipo, mas ao olhar para trás, viu que a entidade permanecia na mesma posição.
Ele então se aproximou do carro.
Ninguém nunca viu a si mesmo. Qualquer imagem que o ser humano tenha de si mesmo é superficial, criada por reflexos ou fotos.
Ali, olhando o próprio corpo morto, Mateus teve um tremendo choque. Estava face a face com a mortalidade. Somente ali, na pós-vida, é que ele se dava conta da fragilidade das coisas.Tudo existia, mas em um instante, poderia deixar de existir. Era tudo tão leviano, tão passageiro.
Não importava mais. Sua família, a viagem, o emprego. Tudo havia ficado para trás.Quando ele se virou para encarar Morte, estava leve. Não sabia o que vinha a seguir, mas se sentia pronto. Sem mais amarras que prendessem ali.
— O que você conhece por vida é o primeiro Dia. É uma diminuta fração de tudo o que realmente existe. Consegue compreender isso?
— Acho que sim.
Morte girou sua foice no ar em um movimento perfeitamente circular, e a lâmina soou como se estivesse cortando tecido. No mesmo instante, um portal se abriu à sua frente. Se assemelhava a uma janela embaçada. Haviam coisas do outro lado, cores que Mateus nunca antes vira, era impossível dizer o que havia do outro lado.
— Este é o início do seu segundo Dia. Deixará seu casulo aqui, e aprenderá o quanto puder sobre tudo o que testemunhar.
Mateus tinha perguntas. Queria saber o que eram esses dias, e o que viria a seguir, mas percebeu que isso só o prendia, e ele realmente não queria isso.
Olhou para aquela entidade soberana, que com certeza já sabia de tanta coisa. Olhou para o portal, que supostamente o levaria em mais uma jornada de aprendizado e crescimento.Tudo isso era muito mórbido, mas também muito empolgante.
Ele se aproximou, colocando primeiro um pé, e depois o outro. O tronco foi em seguida, e então só faltava a cabeça.A humanidade sempre fez a si mesma esse tipo de pergunta existencial.
De onde vim? Para onde vou?
São perguntas que tentam nos fazer entender melhor quem somos. Nos dar um caminho. Uma identidade.E agora, Mateus estava prestes a descobrir.
Descobrir o que vinha depois da morte.
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Depois da Morte [Contos]
Cerita PendekEu temo a morte, mas preciso dela. Ela me fascina e me assusta, me repele e me espanta. Ela me leva, dia após dia, na direção da minha cova. Prazer, sou ser humano.