O olhar se desvia da paisagem árida que corre no lado de fora da janela, para o dedo anular da mão esquerda. Um lacre de embalagem de biscoitos retorcido, com uma conta de vidro vermelha no meio tirada da barra de seu vestido. Era o anel mais precioso que ela já ganhara. Era a lembrança da noite mágica e mais perfeita que já tivera e provavelmente seria a única de sua vida. Uma lembrança na qual poderia se refugiar nos anos de desespero e solidão que estavam a sua frente. Seria colocada numa gaiola dourada, onde todos os seus desejos seriam satisfeitos, menos o mais almejado, a liberdade. A liberdade de escolher seu caminho, seu amor, seu homem. Entre ruínas no meio do deserto, ficara seu palácio e o idílio de um amor impossível, mas vivido por uma noite.
Foi ali na areia do deserto como tapete e o manto escuro da noite pontilhado de estrelas, que viveu a intensidade do amor pela primeira vez. Não havia pressa e a urgência havia sido esquecida. A fogueira era uma parte do calor no frio da noite. A outra, eram os corpos entrelaçados. Calor alimentado pelos beijos há muito desejados, mas evitados. Pelas carícias sonhadas e sufocadas pelas impossibilidades. Nada os separava agora. Um olhar encontra-se no reflexo do outro. E na sua intensidade, como ímã estreita o espaço entre os corpos, tornando possível um roçar de lábios tímido, capaz de despertar o furor de uma paixão. Em um, desconhecida e no outro, adormecida. Pela entrega e intensidade do momento, ambos experimentam uma realidade nova e inesquecível. A intensidade das chamas na fogueira refletiam a intensidade do calor daquele encontro de peles e espíritos atormentados e necessitados de descanso de suas aflições. As mãos e bocas se uniram, fundindo-se numa entrega completa e silenciosa de duas almas.
Ela entregara-se àquele momento com avidez desesperada de quem precisava viver uma vida em uma noite. Fechara os olhos para sentir o odor quente daquele corpo que era tão acolhedor e que ao mesmo tempo a enlouquecia com sentimentos tão intensos e desconhecidos. A novidade avassaladora a impulsionava a agir descobrindo pele e músculos que ficaram gravados na memória de suas mãos, de seu corpo inexperiente. Seus ouvidos se tornaram mais sensíveis a respiração dele, ao som do seu coração, o arfar de seu peito. Parecia até música. A música do amor. Sonhara acordada muitas vezes desde que o conhecera. Sonhara com o momento que estaria em seus braços. Mas a realidade superara sua imaginação. O que viveu tinha a grandiosidade e a profundidade de uma marca feita com ferro em brasa em uma pele descoberta.
Tocou seu dedo de leve e retirou dali seu precioso anel. Ele não podia ser visto ou denunciaria seu amor e a noite mágica que tivera. Ninguém saberia. Permaneceria apenas na sua lembrança. Com o tempo seria como um sonho no sono da noite. Escondeu-o no pingente que levava no pescoço. Colocou-o com o seu outro tesouro. Ali estaria seguro. Não era segredo pra ninguém o quanto aquela joia era preciosa para ela por lembrar sua mãe. Dentro estava a fotografia dela e agora o seu anel. Beijou-o enquanto uma lágrima discreta e silenciosa escorria por seu rosto.
E foi assim, com olhar distante e pensamentos perdidos em sua memória, revivendo mais uma vez, que chegou ao seu destino. Desceu do carro como se não tivesse mais espírito. Seus olhos vazios não brilhavam mais. Não havia mais ali, vontade, desejos, esperança. Parecia morta. Moveu-se sem expressão seguindo a governanta. Quem a conhecia, diria que era um robô.
Encolhia-se dentro da camionete como se alguém o houvesse socado com muita força na boca do estômago. A dor que sentia não era física, mas estendia-se por seus músculos e ossos. Sua cabeça latejava e sentia que ia vomitar. A ausência dela causava uma dor, que cria devia ser como a falta de um membro do corpo que fora amputado. Pelo menos ele sentia assim. Não cria que a vida lhe tivesse dado um presente tão maravilhoso para retirá-lo depois de uma noite.
Finalmente seus olhos puderam se perder nos dela. Vira em seu olhar o reflexo do mesmo amor que carregava dentro do seu peito. Pode sentir seu perfume sem medo que alguém percebesse como o afetava. Tocar seu rosto sem sustos. E deixar-se atrair até roçar seus lábios e perder-se no turbilhão de sensações que o invadiram. Não precisava, não queria mais refrear o furor da paixão que ela provocava, e o consumia fazia semanas. A doçura daquele primeiro beijo, o sabor daquela boca que aprendia na sua, daquelas mãos inexperientes que aprendiam na sua pele, no seu corpo... Era magia. Seus sussurros e gemidos eram música e poesia ao mesmo tempo.
Pensara que nunca mais voltaria a amar, mas a vida lhe presenteara com ela. Voltara a sonhar lindos sonhos. Os pesadelos haviam ido embora. Desde que a vira vestida de branco sobre a muralha, quase etérea com a lua bordada no céu ao fundo, os devaneios não eram mais de horror. Agora perdia-se com suspiros profundos lembrando a tarde daquele dia quando ela caíra sobre ele no mercado, e sentira seu perfume pela primeira vez. A lembrança da maciez daquele corpo sobre o seu substituíra as imagens terríveis que o perseguiam nos últimos quatro anos. Era um homem experiente, mas o seu sorriso o fazia sentir-se como se estivesse aprendendo a respirar. Aprendendo a viver. Aprendendo a amar de uma nova maneira.
O que faria agora? Onde a encontraria?
Depois que ela adormecera em seus braços, ficara durante muito tempo sentindo a textura dos cabelos dela entre os seus dedos, sentindo seu aroma, um perfume fresco de flores brancas, provavelmente jasmim, como o seu nome. Sentia a maciez de seu corpo tão quente e fez planos. Como sairiam do país? Onde procurariam refúgio? No final ficara claro, qualquer lugar em que pudessem estar juntos seria um novo lar. Um lar perfeito. O cansaço finalmente o venceu e lentamente adormeceu com o ressonar dela baixinho em seu peito. Não lembrava direito dos sonhos que tivera, mas estavam povoados de sorrisos, olhos meigos e palavras suaves. Agora se dava conta de que dormira tão profundamente que talvez o que parecia sonho fora ela se despedindo.
Ela deixara uma carta numa folha que arrancara do seu bloco de anotações. Se despedia declarando seu amor e o medo que sentia pela segurança dele. Que vira os guardas próximos e temia que os encontrasse. Se ocorresse, poderiam lhe fazer mal. Informou que iria se entregar e diria que fugira sozinha pedindo carona e andando. Isso cessaria a caçada. Ele estaria seguro. Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto lia e quando chegou no EU TE AMO, no fim da folha, tudo estava embaçado. Uma lágrima caiu quase borrando a assinatura Yasmin. Quando pode finalmente suprimir as lágrimas, percebeu que outras já haviam marcado o papel antes das suas.
A resgataria. Fazendoisso estaria resgatando a si mesmo. Resgatando sua vontade de viver plenamente.De viver e amar com intensidade. Uma intensidade que não conhecera com tantaprofundidade como agora. Talvez a solidão e o desespero dos últimos anos oensinara um novo tipo de amor.
YOU ARE READING
Amor no Deserto
RomanceA Turquia é um país que mistura a ocidentalidade com costumes milenares. Nas relações de família, muitos casamentos ainda são arranjados pelo pai da noiva. Mas nem todas as noivas aceitam seus destinos sem rebeldia. Algumas, além de rebelar-se, tamb...