PRÓLOGO

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(...)E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela. (...) E disse o Senhor Deus à mulher: Por que fizeste isto? E disse a mulher: A serpente me enganou, e eu comi - Gênesis 6 e 13:14''



 O café quente sob a mesa me mantia acordada, enquanto minhas mãos se ocupavam de desenhar mais um esboço mal feito.
Desenha.

Rabisca.
Apaga e rasga o papel.

Já era o meu terceiro croquet de um vestido de moda. Um dos trabalhos do projeto da faculdade. O trabalho deveria ser entregue em quinze dias, mas imaginem só, eu mal havia começado a ter o modelo em desenho. E eu tive a minha terceira tentativa frustrada no meio da aula de História da Moda Contemporânea I quando fui interrompida pela chegada de uma aluna na classe. O professor ignorou o seu atrasado e continuo a sua falácia.

- Olha o que eu ganhei! - Cecília balançou sua mão após tomar o seu lugar ao meu lado - Estou noiva de Jonas!

Cecília Albuquerque era minha amiga da faculdade e com seus longos cabelos loiros e olhos verdes não se deixava passar despercebida. Diferente de mim, ela sempre teve tudo que quis. Nascida de uma família típica carioca de classe média alta, Cecília estava no auge de sua glória; havia acabado de ser pedida em casamento pelo namorado de longa data. Enquanto eu mal sabia como começar um simples trabalho acadêmico.

- Que legal! Parabéns! - eu disse, tentando parecer convincente e realmente interessada.
- Esse anel não é lindo? Eu chorei tanto quando eu recebi o pedido. Havia pétalas de rosas no chão e balões pendurados no teto. Foi perfeito... você viu as fotos, não é?

Eu balancei a cabeça concordando.

Com todas essas redes sociais e postagens em tempo real, era difícil não ficar sabendo da vida alheia. Maldita tecnologia.

- Ficou lindo...

- O que houve, amiga? Brigou com seu irmão de novo?

Suspirei enquanto fingia prestar atenção no professor e em sua aula nada didática.

Minha vida comparada à de Cecília era lamentável. Morava com minha avó materna e meus dois irmãos. O mais novo se chamava Théo e tinha apenas nove anos de idade, enquanto Alexandre, o mais velho com dezoito anos me dava mais trabalho que o mais novo. Meu irmão mais velho era o típico cara sem noção que não pensa no futuro e não tem ambições. Diferente de mim, que sempre buscava por mais coisas. Em dez anos conseguia me enxergar como uma estilista famosa e bem sucedida, enquanto Alexandre no máximo se tornaria um profissional de educação física. Não me julgue, longe de mim desfazer de qualquer profissão, mas ao meu ver a única coisa que meu irmão sabia fazer era malhar os músculos. Além de perturbar a minha vida, é claro.

- Os mesmos problemas de sempre...

Cecília assentiu enquanto abria o caderno com capa cor-de-rosa e tomava nota de qualquer frase que ouvira sair da boca do professor.

- Já fez seu trabalho da aula de criações? - ela me perguntou.
- Ainda não... e você?
- Já estou terminando os últimos detalhes da costura.

E minha amiga loira sempre estava há um passo na minha frente.

† † †

Antes mesmo de abrir a fechadura da porta eu pude ouvir a gritaria no corredor do apartamento em que morava. A porta se abriu e eu joguei minha mochila e minha pasta no chão da sala.
- Me devolve, Xande! Isso não é justo!
- Você já jogou demais, agora é a minha vez.

Meus dois irmãos brigavam na sala.

- Posso saber o que está acontecendo por aqui? - eu os questionei.

- Diz para ele me devolver o controle? - Théo me pediu fazendo beicinho.

- Não acredito no que estou vendo, Alexandre! Brigando com uma criança por causa de vídeo game!

Meu irmão mais velho exibia um sorriso descarado na boca e apesar do tempo estar frio, ele vestia apenas uma bermuda e estava sem blusa.

- Se esqueceu que o jogo é meu?

Soltei uma risada seca.

Não podia acreditar que um cara de dezoito anos estava brigando com uma criança de sete.
- Você está de brincadeira, né? - coloquei as mãos na cintura.

- Não estou não - ele ergueu o controle no alto acima de sua cabeça.
- Você vai devolver para o Théo ou terei que dar um chute no meio de suas pernas.
- Essa eu pago para ver - ele me desafiou.
Aquilo era demais para mim. Não bastasse ter que cuidar de meu irmão mais novo e de minha avó, ainda tinha que educar um velho barbudo. Tudo aquilo era culpa de minha mãe. Por quê ela tinha que ter nos abandonado? O que eu havia feito para merecer tudo aquilo?

- Você não tem vergonha na cara? Devolva esta merda para ele - eu vociferei puxando o controle da mão de Alexandre.

- Tudo bem. Você venceu, baixinha - ele fazia de tudo para me deixar fora do eixo.

Devolvi o controle para o Théo que chorava baixinho sentado no sofá rasgado de couro falso.

- Onde você vai? - o questionei assim que o vi dar meia volta, colocar uma camisa e pegar o dinheiro que estava embaixo do vaso de flores na estante.

- Qual foi? Vai querer me controlar agora? Você não manda em mim. Se esqueceu que a mamãe nos deixou?
Me destruindo com essa frase ele deixou o nosso pequeno apartamento.
Sentei ao lado de Théo, que retomava seu posto anterior e sorria enquanto matava um zumbi.

Ele estava feliz novamente, enquanto eu me encontrava abalada por lembrar a verdade que nunca quis aceitar: havíamos sido abandonados duas vezes. Nosso pai fora embora com a morte muito cedo e nossa mãe foi reconstruir sua vida com outro homem em outra cidade e nunca mais nos procurou.

A verdade era cruel.
No final do dia todo o peso da culpa caía sobre os meus ombros, por mais que eu soubesse que nada daquilo havia acontecido por minha causa.

Só desejei baixinho que algo acontecesse em minha vida e que mudasse tudo aquilo.

Pois eu estava disposta a fazer tudo para sair daquele situação.

Faria de tudo para ter o que eu quisesse.

O AcordoOnde histórias criam vida. Descubra agora