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COMEÇOU A ESFRIAR naquele dia e no seguinte sobreveio a chuva. A
tromba-d’água apanhou-me na volta do Ospedale Maggiore e eu estava ensopado
quando entrei no hospital. Subi para o meu quarto com a chuva caindo pesada no
terraço lá fora, e o vento fustigando as vidraças. Mudei de roupa e tomei uma
dose de conhaque, que não me caiu muito bem. Fiquei nauseado durante a noite
e, pelo café da manhã, vomitei.
— Não há dúvida — disse o médico do hospital. — Basta olhar o branco dos
seus olhos.
A senhorita Gage examinou meus olhos e depois me apresentou um espelho.
A esclerótica estava amarela. Icterícia. Fiquei doente por duas semanas e não
pude aproveitar a licença com Catherine. Tínhamos combinado passar as três
semanas em Pallanza, no lago Maggiore, porque é lindo o outono lá. Pode-se dar
belos passeios e pescar trutas no lago. Melhor que Stresa, porque há menos gente.
Stresa fica muito perto de Milão, e nada mais frequente do que encontrar
conhecidos na região. Pallanza é um lugar encantador, e lá podemos remar até a
ilha dos pescadores, onde há bons restaurantes. Mas não fomos para lugar algum.
Num desses dias de icterícia, eu estava na cama quando a senhorita Van
Campen entrou, abriu o armário e viu as garrafas vazias. Como eu tinha
mandado descer uma porção delas pelo porteiro, julguei que ela houvesse visto e
tivesse vindo verificar se havia mais. Eram garrafas de vermute, de Marsala, de
Capri, de conhaque e de Chianti. O porteiro levara as maiores, de vermute e
Chianti, e deixara por último as de conhaque. Foram as garrafas de conhaque e
uma de Kümmel em forma de urso que a senhorita Campen encontrou. Esta
última, sobretudo, a enfureceu. Levantou-a no ar e fiquei rindo ao ver aquele
urso de vidro com as patas dianteiras erguidas, rolha na cabeça e cristalização de
açúcar dentro.
— Kümmel, senhorita Campen. O melhor Kümmel vem da Rússia, nesses
ursos de vidro.
— E estas outras são todas de conhaque? — perguntou ela.
— Não posso vê-las daqui, mas provavelmente são.
— Há quanto tempo isso anda acontecendo por aqui?
— Fui eu mesmo que as comprei e as trouxe para cá — respondi. — Tenho
sempre visitas de oficiais italianos e conservava o conhaque para oferecer a eles.
— E você não bebia?
— Também bebia um pouco.
— Conhaque! — exclamou ela. — Onze garrafas de conhaque e ainda esta
do urso!
— Kümmel.
— Vou mandar alguém retirá-las daqui. São as únicas vazias que há em seu
quarto?
— No momento, são.
— E eu com dó da sua icterícia! Não vale a pena gastar sentimentos com
alguém como você.
— Obrigado.
— Não creio que possa ser censurado por não querer voltar para o front. Mas
podia experimentar um meio mais inteligente do que contrair icterícia por meio
do alcoolismo.
— Por meio do quê?
— ... do alcoolismo, repito. — E, como eu me calasse, continuou: — A não
ser que descubra outro meio de ficar por aqui, creio que a despeito dessa icterícia
terá de seguir para o front. Não acredito que icterícia provocada o habilite a gozar
uma licença de convalescente.
— Não acredita?
— Não.
— Nunca teve icterícia, senhorita Campen?
— Não, mas suponho que é melhor do que o front.
— Senhorita Van Campen — disse eu —, nunca ouviu falar do homem que
procurou inutilizar-se para não ir à guerra dando um pontapé no seu próprio
escroto?
A senhorita Campen ignorou a pergunta. Tinha de ignorá-la ou sair do quarto.
E não saiu porque me detestava já de muito tempo e queria ajustar contas.
— Sei de muitos homens que escapam da guerra por meio de ferimentos
feitos em si próprios.
— Isso não responde à minha pergunta. Também conheci casos semelhantes.
Mas o que quero saber é se a senhora sabe do homem que, para inutilizar-se para
a guerra, deu um pontapé em seu próprio escroto. Porque essa é a sensação da
icterícia, uma sensação que, suponho, poucas mulheres tenham conhecido. Foi
por isso, senhorita Campen, que perguntei se a senhora tinha tido icterícia,
porque... — Neste ponto, porém, a senhorita Campen saiu do quarto.
Logo depois a senhorita Gage entrou.
— O que é que houve com a senhorita Campen? Está furiosíssima.
— Estivemos comparando sensações. Eu ia dizer que ela nunca tinha
experimentado a dor do parto...
— Você é um louco — alarmou-se a senhorita Gage. — Ela anda querendo
sua pele há tempos.
— Sei disso. Vai me fazer perder a licença e procurará me meter em uma
corte marcial. É cruel o suficiente para fazer isso.
— Nunca simpatizou com você. Mas o que foi que houve?
— Afirmou que eu havia provocado a icterícia com bebidas para não voltar ao front.
— Uau! — exclamou a senhorita Gage. — Pois vou jurar que você nunca pôs
álcool na boca. Todo mundo jurará que você nunca bebeu coisa alguma.
— Ela encontrou as garrafas.
— Eu já falei centenas de vezes que mandasse alguém levar as garrafas
daqui. Onde estão?
— No armário.
— Tem uma valise aí?
— Não, mas tenho minha sacola.
A senhorita Gage enfiou as garrafas no saco.
— Vou entregá-las ao porteiro — disse ela, e foi saindo. Mas esbarrou com a
senhorita Van Campen, que já voltava com o porteiro.
— Eu tomarei conta disso — ordenou, apossando-se do saco. — Quero
mostrá-las ao médico, quando fizer o meu relatório.
Disse isso e desceu, com o porteiro carregando o saco. Ele bem sabia o que
estava dentro.
Mas nada me aconteceu, além da perda da licença.

O Adeus às armasOnde histórias criam vida. Descubra agora