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EU REMAVA a favor do vento. A chuva havia parado, a não ser por algumas
pancadas ocasionais. Estava muito escuro, o vento era gelado. Eu podia enxergar
Catherine à popa, mas não via a água do lago, onde as pás do remo
mergulhavam. Os remos eram compridos e sem a cobertura de couro no punho
que os impede de escorregar. Eu lhes dava impulso, levantava-os, inclinava-me à
frente, atingia a água, afundava-os e dava novo impulso, com toda calma,
confiando na ajuda do vento. Sabia que minhas mãos iriam empolar-se e tratava
de poupá-las. O bote, muito leve, avançava com facilidade. Não conseguia
enxergar nada e torcia para já estarmos perto de alcançar o ponto oposto a
Pallanza.
Não cheguei a avistar Pallanza. O vento estava agitando o lago e passei por
Pallanza sem enxergar luz alguma. Só muito mais acima avistamos algumas
luzes, e mais perto da margem, em Intra. Mas por muito tempo não vi luz
nenhuma, nem enxergava as margens, mas remava firme, dentro da escuridão,
galgando as ondas que iam se formando. Havia vezes em que uma onda maior
erguia a embarcação e os remos não atingiam a água. Era exaustivo, mas
continuei a remar, até que de repente nos vimos novamente próximos à margem,
correndo ao longo de uma massa rochosa, que se erguia bem do nosso lado, com
as ondas chocando-se contra ela. Remei com força para afastar o bote dali, rumo
ao largo.
— Estamos atravessando o meio do lago, agora — disse para Catherine.
— Não íamos ver Pallanza? — ela perguntou.
— Já passamos por lá.
— E como você está, querido?
— Muito bem.
— Eu posso remar um pouco.
— Não. Estou indo bem.
— Pobre Ferguson — suspirou Catherine. — De manhã, irá ao hotel e vai
descobrir que partimos.
— Não estou preocupado com isso, neste momento. Tudo o que quero é
alcançar a Suíça antes que amanheça e os guardas nos vejam.
— Falta muito?
— Mais ou menos trinta quilômetros.
Remei a noite inteira. Minhas mãos já doíam tanto que mal podia segurar os
remos. Por várias vezes quase fomos esmagados contra os rochedos. Eu seguia
costeando a margem, com medo de me perder e desperdiçar tempo. Às vezes,
chegávamos tão perto da margem que víamos a estrada ladeada de árvores e as
montanhas ao fundo. A chuva parou de vez, e o vento varrera as nuvens, de modo que a lua apareceu. Olhando para trás, pude ver a mancha escura de
Castagnola e a capa de neve das montanhas distantes. Então, as nuvens cobriram
a lua novamente, fazendo sumirem as montanhas e a visão que tínhamos do lago.
Mas ainda havia mais luz do que antes, e podíamos enxergar alguma coisa da
margem. Eu podia enxergá-la tão nitidamente, que me afastei, com medo de ser
visto por policiais da fronteira que estivessem postados pela estrada de Pallanza.
Quando a lua reapareceu, vimos, por entre as árvores, algumas villas brancas na
margem e a encosta, e trechos de estrada. Até chegar ali não havia parado de
remar.
O lago alargou-se e, adiante, no sopé das montanhas, distingui luzes numa
reentrância que devia ser Luíno. Se era, tínhamos feito o percurso em muito
pouco tempo. Sentia-me cansadíssimo. Ergui os remos e me recostei no assento.
Todo o meu corpo doía — ombros, costas, braços e mãos.
— Que tal eu abrir o guarda-chuva? — sugeriu Catherine. — Podia nos servir
de vela.
— E você sabe manobrar um leme?
— Acho que sim.
— Então tome este remo e mantenha-o em posição, enquanto eu faço o
guarda-chuva de vela.
Passei para a popa e mostrei-lhe como fazer do remo um leme. Abri depois o
guarda-chuva do porteiro e sentei-me na proa, colocando o bojo do guarda-
chuva contra o vento. O guarda-chuva inflou, com um estalido. Eu o mantinha
seguro como podia, usando inclusive as pernas para firmar o cabo, que
enganchei no assento. O vento o colheu em cheio e senti o bote ser impulsionado
à frente. Meu esforço para manter o guarda-chuva era grande, mas o bote
voava.
— Estamos indo muito bem — disse Catherine.
Tudo que eu podia ver eram as varetas do guarda-chuva. Felizmente, o
guarda-chuva era resistente e estava aguentando bem. Eu continuava usando
braços e pernas para firmá-lo, mas de repente ele cedeu e virou pelo avesso.
Ainda tentei segurar as abas, agarrando-as com as duas mãos, mas no instante
seguinte eu tinha apenas o cabo preso entre as pernas e um guarda-chuva
inutilizado. Desprendi-o do assento, larguei-o no fundo do bote e voltei a remar.
Catherine começou a rir. Ela tomou minhas mãos e não parava de rir.
— Que há, Cat?
— Você estava tão engraçado segurando o guarda-chuva...
— Provavelmente…
— Não se zangue, querido. Estava mesmo engraçadíssimo. Precisava ver
você mesmo, parecendo ter metros e metros de largura, com os braços
esticados, tentando segurar as pontas. — Ela estremeceu com novo acesso de
riso.
— Vou continuar remando.
— Descanse um pouco e tome um gole de conhaque. A noite está bonita e
temos muito caminho pela frente.
— Preciso conservar o bote longe do alcance dos vagalhões.
— Eu pego o conhaque para você. Depois descanse um pouco, querido.
Ergui os remos enquanto Catherine abria a mala para pegar o conhaque. Ela
me passou a garrafa. Saquei a rolha com o canivete e tomei um bom gole. Era
revigorante e quente, e me fez muito bem. Eu me senti reanimado, assim que a
bebida começou a me descer pela garganta.
— Um ótimo conhaque — murmurei. A lua escondera-se de novo, mas eu
ainda enxergava a margem.
— Você está bem agasalhada, Catherine?
— Estou ótima, querido. Somente um pouco rígida.
— Pegue um balde para jogar fora a água do fundo do bote e estique os pés.
Prossegui remando, enquanto escutava o rumor da água baldeada por
Catherine.
— Pode me passar esse balde? Estou com sede.
— Mas está imundo.
— Não faz mal. É só dar uma enxaguada antes.
Ouvi Catherine esfregando o balde por dentro. Depois encheu-o no lago e me
passou. O conhaque me deu sede, mas a água estava tão fria que os dentes me
doeram. Olhei em direção à margem. Estávamos perto de uma pequena
enseada, e avistei luzes logo à frente.
— Obrigado — eu disse, devolvendo o balde.
— De nada. Tem muito mais água no lago, se ainda estiver com sede.
— Não quer comer alguma coisa?
— Não. Ainda não estou com fome. Enquanto isso, vamos economizando
provisões.
— Certo.
O que enxergáramos à frente era um comprido pontal montanhoso. Eu me
afastei de novo para o meio do lago, tentando escapar dele. O lago tornara-se
muito mais estreito. A lua reaparecera e algum guardia di Finanza poderia
avistar o vulto do bote se estivesse atento.
— Como está, Cat?
— Sempre bem. Onde estamos?
— Creio que ainda temos uns quatorze quilômetros.
— Na água isso é muita coisa, meu pobre querido. Você deve estar exausto.
— Não. Eu estou muito bem. Minhas mãos doem, mas é só.
Prosseguimos. Havia uma garganta na montanha do promontório e depois um
trecho plano, com a margem bastante baixa, onde devia estar Cannobio. Tive de
pôr-me mais ao largo porque o perigo de ser avistado pelos guardas aumentava. Havia uma alta montanha capeada de neve na margem oposta. Eu estava
cansadíssimo. A distância a remar não era, em si, grande, mas era demais para o
meu cansaço. Tínhamos de passar aquela montanha e percorrer ainda oito
quilômetros antes de alcançar águas suíças. A lua já estava muito baixa e de
novo oculta pelas nuvens. Eu remava e às vezes parava, com os remos erguidos,
para que o vento batesse nas lâminas.
— Deixe que eu reme um pouco — pediu Catherine.
— Acho que não deve.
— Que absurdo. Por quê? Um pouco de exercício é bom para mulheres
grávidas.
— Está bem. Mas reme com moderação. Vamos trocar de lugar. Cuidado.
Sentei-me à popa, com a gola do capote erguida, e fiquei vendo Catherine
remar à proa. Ela remava muito bem, mas aqueles remos eram compridos
demais para os seus braços. Abri o saco de provisões, comi dois sanduíches e
bebi um gole de conhaque. Fez-me bem e tomei outro gole.
— É só me dizer quando estiver cansada — pedi a ela. — E cuidado para os
remos não baterem na sua barriga.
— Se isso acontecesse — respondeu Catherine entre duas remadas — a vida
ia ficar muito mais fácil para nós.
Tomei outro gole de conhaque.
— Como está se sentindo?
— Bem — respondeu Catherine.
— Diga-me quando quiser parar.
— Está certo.
Tomei mais um trago, em seguida movi-me para a proa.
— Não — disse ela. — Eu ainda aguento um pouco.
— Volte para a popa. Já descansei o bastante.
Graças à bebida, retomei, por alguns momentos, com facilidade e firmeza, os
remos. Mas, passados os primeiros efeitos, comecei a me sentir tonto e me veio
na boca um gosto escuro de bílis.
— Por favor, mais água.
Antes das primeiras luzes da manhã, começou a chuviscar. O vento
amainara, e estávamos protegidos pelos montes que fechavam as curvas do lago.
Quando senti a madrugada se aproximar, passei a remar com mais ímpeto.
Não sabia onde estava e ansiava por já me ver na parte suíça daquelas águas.
Enxergava a margem já bem perto — repleta de recifes e árvores.
— O que é isso? — quis saber Catherine.
Larguei os remos e apurei os ouvidos. Era o chacoalhar de um motor, no
meio do lago. Fiz o bote se aproximar da margem e fiquei quieto. O chacoalhar
se aproximava. Uma embarcação. Distingui dentro quatro guardias di Finanza,
com chapéus alpinos, golas erguidas e carabinas às costas. Pude ver o amarelo dos chapéus e as marcas amarelas das golas. Mas pareciam sonolentos, àquela
hora, tão cedo. O motor continuou a fazer barulho, mas cada vez mais longe, até
perdermos a lancha de vista, encoberta pela chuva.
Remei firme para o largo. Se estivéssemos tão perto da fronteira o quanto eu
acreditava, não queria ser pego pelos olhos de nenhuma sentinela de guarda na
estrada. Afastei-me para longe, de onde apenas avistasse a linha da margem, e
por três quartos de hora remei debaixo da chuva. Ouvi mais uma vez o barulho
de uma lancha e depois mais nada. O chacoalhar do motor desapareceu indo
para o outro lado do lago.
— Creio que já estamos na Suíça, Catherine.
— Tem certeza?
— Não há meio de sabermos com segurança antes de avistarmos soldados
suíços.
— Ou a marinha suíça — brincou ela.
— Para nós a marinha suíça não é uma piada. O último motor de barco que
escutamos devia ser da marinha suíça.
— Se já estamos na Suíça, vamos tomar o nosso desjejum por lá. Eles fazem
uns pãezinhos deliciosos, uma manteiga excelente e ótimas geleias.
Já era dia, agora, e a chuva fina persistia. Lago acima avistamos cumes de
montanhas toucados de neve. Indiscutivelmente, estávamos na Suíça. Avistamos
numerosos chalés nas linhas da margem, e árvores, e depois uma vilazinha de
casas de pedra na encosta e uma igreja. Examinei a estrada paralela à margem
à procura de guardas, mas não vi nenhum. A estrada corria bem próxima à
fímbria do lago, facilitando-me a visão. Logo a seguir, vi um soldado saindo de
um café, com uniforme esverdeado e capacete de tipo alemão. Tinha aspecto
saudável e bigode. Ele nos viu e ficou nos observando.
— Acene para ele — disse a Catherine, e ela acenou.
O soldado, meio sem graça, sorriu e nos deu um aceno em resposta. Afrouxei
os remos. Estávamos defronte ao embarcadouro da aldeia.
— Já devemos ter passado muito além da fronteira — observei.
— É o que temos de verificar, querido. Não podemos nos arriscar a que nos
devolvam para a Itália.
— Garanto que a fronteira já ficou muito para trás. Aquilo lá deve ser um
posto alfandegário. Vai ver que é Brissago.
— Mas não haverá italianos por aqui? Há sempre gente dos dois países nestes
postos fronteiriços.
— Em tempo de guerra, não. Não creio que os suíços deixem os italianos
cruzar a fronteira.
Pus-me a examinar a cidadezinha. Era linda. Vi muitos barcos de pesca no
cais e redes de pesca estendidas. Apesar da chuva fina, a aldeia me pareceu
alegre. — Vamos desembarcar para comermos alguma coisa.
— É uma excelente ideia.
Remei para o cais e encostei. Recolhi os remos, agarrei um argolão de ferro,
saltei para a pedra molhada — estava na Suíça. Amarrei o barco e estendi a mão
para ajudar Catherine a descer.
— Pule, Catherine. Vai ser sentir maravilhosa.
— E as malas?
— Ficam no bote.
Catherine saltou do barco, e estávamos juntos, agora, na Suíça.
— Que linda terra!
— Não é extraordinário?
— Vamos depressa. Estou faminta.
— Não é um país maravilhoso? Estou adorando sentir a Suíça sob meus pés.
— Estou com os meus pés tão dormentes que não sinto nada. Mas é de fato
um país magnífico, querido. Paz, paz. Está entendendo, querido? Estamos salvos,
longe daquela terra desgraçada.
— Claro que entendo. E é perfeito! Nunca imaginei coisa tão boa.
— Veja as casas. Linda praça, não? Deve haver um lugar aqui onde
possamos comer!
— E que chuva deliciosa! Quando a Itália teve uma chuva linda assim?
Procuramos um café, entramos e sentamos à mesa, muito limpa, de
madeira. Estávamos terrivelmente excitados. Uma esplêndida mulher, de linda
presença e avental branco, aproximou-se e nos perguntou o que queríamos.
— Café, pãezinhos e geleias — disse Catherine.
— Sinto muito, mas não temos pãezinhos… por causa da guerra.
— Pão comum, então.
— Posso fazer umas torradas.
— Está bem.
— E também ovos fritos, para mim.
— Quantos?
— Três.
— Peça quatro, querido.
A mulher afastou-se. Beijei Catherine e fiquei segurando sua mão.
Olhávamos um para o outro e para tudo em volta, compenetrados.
— Querido, querido, não é um encanto?
— Claro que é.
— Não faz mal que não haja pãezinhos. Pensei neles a noite inteira. Mas não
faz mal. Nada faz mal.
— Acho que dentro em pouco seremos detidos.
— Não faz mal, querido. Primeiro, vamos comer. Não faço caso de ser presa
de estômago cheio. E eles nada podem fazer contra nós. Eu sou inglesa e você é cidadão americano.
— Você está com o seu passaporte?
— Está na mala. Não vamos pensar mais nisso. Temos de aproveitar a nossa
felicidade.
— Seria impossível me sentir mais feliz — murmurei.
Um gatão gordo, de cauda erguida como uma pluma, cruzou a sala e veio
esfregar-se em minhas pernas, resmungando. Catherine sorria contente.
— Aí vem a comida.
Fomos detidos logo depois da refeição. Fomos dar uma caminhada pela vila e
depois fomos ao cais apanhar nossas malas. Lá encontramos um soldado à nossa
espera.
— Este bote é seu?
— É.
— De onde vêm?
— Do lago, mais acima.
— Então, tenho de pedir-lhe que me acompanhe.
— E as malas?
— Pode trazê-las. De que nacionalidade são?
— Sou americano. Ela é inglesa.
Carreguei as malas, e Catherine seguiu ao meu lado, com o soldado à frente,
rumo à alfândega. Lá, um tenente muito magro e muito militar nos perguntou:
— Nacionalidade?
— Americana e inglesa.
— Deixe-me ver os passaportes.
Apresentei o meu, e Catherine tirou o dela da mala. O tenente examinou-os
cuidadosamente.
— Por que entraram na Suíça, assim, de bote?
— Sou um esportista, um aficionado do remo — respondi. — Gosto de remar
sempre que tenho uma oportunidade.
— Para que vêm à Suíça?
— Para os esportes de inverno.
— Aqui não há esportes de inverno.
— Sei disso. Queremos ir para onde haja.
— O que esteve fazendo na Itália?
— Estudando arquitetura. Minha prima estudava arte.
— Por que saíram de lá?
— Porque queríamos praticar esportes de inverno e porque os nossos estudos
foram interrompidos por causa da guerra.
— Façam o favor de ficar aqui — disse o tenente, indo para outra sala com os
nossos passaportes.
— Você esteve esplêndido, querido — sussurrou-me Catherine. — Vamos manter isso… esportes de inverno.
— E você? Sabe alguma coisa de arte?
— Rubens — respondeu Catherine.
— Grande, gordo...
— Ticiano.
— Cabelos ruivos. E o que sabe de Mantegna?
— Não me pergunte sobre os difíceis. Mas sei alguma coisa sobre
Mantegna… um pintor amargo.
— Muito amargo, sim. Muitos buracos de pregos na parede.
— Vê que hábil mulherzinha você tem? Sou capaz de discutir arte com esta
alfândega inteira.
— Lá vem ele — sussurrei, vendo o tenente aproximar-se com os nossos
passaportes na não.
— Tenho de enviá-los a Locarno — afirmou ele. — Podem tomar um
veículo e um guarda os acompanhará.
— Muito bem. E o bote?
— O bote está confiscado. O que trazem nessas malas? — O tenente revistou
as malas e tirou logo a garrafa de conhaque.
— Aceita um gole? — perguntei.
— Não, obrigado — respondeu, erguendo-se. — Quanto dinheiro traz?
— Duas mil e quinhentas liras.
A quantia impressionou-o bem.
— E a sua prima?
Catherine tinha pouco mais de mil e duzentas. O tenente pareceu satisfeito e
sua atitude passou a ser menos militar.
— Se querem esportes de inverno — disse ele —, Wengen é o melhor lugar.
Meu pai é dono de um excelente hotel por lá, que fica aberto o ano todo.
— Esplêndido! — exclamei. — Pode me dar por escrito o nome do hotel?
O tenente escreveu o nome num cartão e o entregou a mim com toda a
polidez.
— O soldado os levará a Locarno e ficará com seus passaportes. Sinto muito,
mas é necessário. Espero que lá lhes deem o visto ou uma permissão policial.
O tenente entregou os dois passaportes ao soldado, e saímos de lá com as
malas, à procura de uma carruagem.
— Ei! — gritou o tenente para o soldado, chamando-o, depois conversou algo
com ele em um dialeto alemão. O soldado pôs a carabina às costas e pegou
nossas malas para carregá-las.
— Não há dúvida de que este é um grande país — admirou-se Catherine.
— Muito práticos.
— Obrigadíssimo, senhor tenente — disse eu.
— A seu serviço! — Ele respondeu, acenando-me com a mão.
Seguimos o soldado pela aldeia adentro.
Fomos para Locarno, com o guarda na boleia junto ao cocheiro. Não tivemos
maiores dificuldades por lá. Fomos interrogados, mas polidamente, porque
tínhamos passaportes e dinheiro. Não creio que acreditassem numa só palavra do
que dissemos, mas era como num tribunal. Não era preciso dizer nada plausível,
mas sim algo que tecnicamente fizesse sentido e nos ativéssemos a isso sem mais
explicações. O que importava era que estávamos com os passaportes e íamos
gastar dinheiro por lá. Portanto, deram-nos o visto provisório, que podia ser
cancelado a qualquer tempo. Tínhamos de comunicar à polícia qualquer
mudança de hotel ou de cidade.
— Para onde quer ir, Catherine?
— Para Montreux.
— É uma linda cidade — disse o oficial. — Acho que vão gostar muito.
— Queríamos um local onde se praticasse esportes de inverno.
— Não vão encontrar isso em Montreux.
— Perdão — disse o segundo oficial. — Sou de Montreux. Praticam-se
esportes de inverno ao longo da Montreux Oberland Railway. Parece-me
absurdo negar isso.
— Não nego. Só digo que não há esportes de inverno em Montreux.
— Pois eu discordo — contraveio o segundo oficial. — Digo que está
enganado.
— E eu sustento o que afirmei.
— Absurdo. Costumo fazer luge-ing nas ruas de Montreux e isso por certo é
um esporte de inverno.
— Acha que luge-ing é esporte de inverno, senhor? Continuo a afirmar que
ficarão muito bem aqui em Locarno. Clima ótimo, arredores atraentes. Vão
gostar muito.
— Mas o cavaleiro manifestou vontade de ir para Montreux.
— O que é luge-ing? — perguntei.
— Está vendo? Ele nunca ouviu falar em luge-ing.
Aquilo significava muito para o segundo oficial, o qual sorriu.
— Luge-ing, explicou o primeiro, é andar de trenó. Ou de tobogã.
— Peço licença para discordar de novo — interveio o outro. — O tobogã
difere do luge. O tobogã vem do Canadá e é construído de ripas, e o luge é um
trenó comum dotado de esquis compridos embaixo. Precisamos não confundir as
coisas.
— E não poderíamos andar de trenó? — perguntei.
— Sem dúvida — volveu o primeiro oficial. — E muito bem. Há excelentes
tobogãs do Canadá à venda em Montreux. A firma Ochs Brothers vende tobogãs
importados.
O segundo oficial interveio.
— O tobogã requer pista especial. Ninguém pode correr de tobogã nas ruas
de Montreux. Onde vão ficar aqui em Locarno?
— Não sabemos ainda — respondi. — Acabamos de chegar de Brissago. O
carro que nos trouxe ainda está aí na porta.
— O senhor não cometerá um erro indo a Montreux — insistiu o primeiro
oficial. — Encontrará, sim, um clima ótimo e lindas paisagens. E estará próximo
dos locais de esportes de inverno.
— Quem realmente quer praticar esportes de inverno — tornou o segundo
oficial —, vai a Engadine ou a Murren. Protesto contra qualquer opinião que
indique Montreux como terra de esportes de inverno.
— Em Les Avants, acima de Montreux, há esportes de inverno de todo tipo.
O campeão de Montreux arregalou os olhos para o seu colega.
— Senhores — disse eu. — Creio que vou para lá. Minha prima está muito
cansada. Vamos experimentar Montreux.
— Dou-lhes os meus parabéns — disse o primeiro oficial estendendo-me a
mão.
— Pois eu creio que vai arrepender-se muito de deixar Locarno — volveu o
segundo oficial. — Mas, seja como for, tem de apresentar-se à polícia de
Montreux.
— Não terá problemas com isso — declarou o primeiro oficial. — O povo de
lá é muito cortês e amistoso.
— Obrigado aos dois pelas informações que me deram — respondi,
despedindo-me.
Eles se curvaram, nos cumprimentando, quando saíamos. O campeão de
Locarno portava-se com alguma frieza. Dali tomamos o carro que estava à nossa
espera.
— Meu querido... — murmurou Catherine. — Não poderíamos ter chegado a
esta solução mais cedo?
Transmiti ao cocheiro o nome do hotel que um dos oficiais me havia
recomendado. Ele ergueu as rédeas.
— Você esqueceu o exército, querido — observou Catherine.
O soldado que nos acompanhara estava ali de pé. Dei-lhe uma nota de dez
liras, explicando achar-me sem dinheiro suíço. Ele agradeceu, saudou-nos e foi
embora. O carro partiu para o hotel.
— Por que escolheu Montreux? — perguntei a Catherine. — Quer mesmo
ficar lá?
— Foi o primeiro nome que me veio à cabeça. Não é mau lugar. Podemos
nos alojar em qualquer ponto da montanha.
— Está com sono?
— Já estou de olhos fechados, meu amor.
— Ah, vamos dormir muitíssimo bem. Pobre Cat. Teve uma noite bem dura.
— Que nada. Tive uma noite linda… especialmente quando você tentou
segurar o guarda-chuva do porteiro...
— Parece incrível que estejamos na Suíça.
— Tenho medo de acordar e verificar que tudo não passa de um sonho.
— Eu também.
— Mas é mesmo verdade, querido? Não estarei rodando com você rumo
àquela stazione de Milão, para vê-lo sumir-se num trem?
— Espero que não, querida.
— Não fale assim que me mete medo.
— Estou caindo de cansaço e sono.
— Deixe-me ver suas mãos.
Mostrei-as. Estavam em carne viva.
— Pelo menos não tenho um ferimento de lança no lado do meu corpo.
— Não diga sacrilégios.
Eu sentia uma espécie de tontura. A exaltação hilariante passara. O carro
rodava ao longo da rua.
— Pobres mãos — murmurou Catherine.
— Não toque nelas — disse eu. — Por Cristo, não sei onde estamos. Para
onde vamos indo, cocheiro?
O homem sofreou o animal.
— Para o Hotel Metrópole. Não é para lá que quer ir?
— É, sim — respondi. — Está tudo bem, Cat?
— Está, querido. Não se entristeça. Vamos dormir à vontade e amanhã você
estará novo.
— Estou um pouco tonto, Cat. Parece que saí de uma operação. Talvez seja
fome.
— É só cansaço, querido. Logo estará bem.
O carro parou diante do hotel. Um rapaz veio pegar a nossa bagagem.
— Estou me sentindo bem — disse, entrando.
— Sei que está bem, mas está exausto. Há quanto tempo está sem dormir?
— Estamos na Suíça e nada mais importa.
— Sim, querido. Estamos realmente na Suíça. Não é um sonho.
Entramos no hotel, seguidos do garoto que carregava nossas malas.

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