Anne de Green Gables, de Lucy Maud Montgomery, um romance canadense que há cem anos agrada e comove jovens e adultos do mundo todo, finalmente chega aos leitores brasileiros. Desconhecida em nosso país, essa obra clássica, bestseller nos mercados europeus e norte-americanos, se tornou um ícone cultural, inspirando a criação de vários espetáculos teatrais, filmes, séries televisivas e desenhos animados. Trata-se, pois, de um texto com extensas qualidades universais, uma opção de entretenimento para todos que buscam uma leve, mas valiosa, leitura familiar.
Publicado nos Estados Unidos pela primeira vez em 1908, o romance, em 1925, atravessou o Atlântico e na Inglaterra superou 1 milhão de cópias. A história de uma menina de temperamento extraordinário que em consequência de uma confusão chega do orfanato à Ilha Príncipe Eduardo para enfim ser adotada por um casal de irmãos já envelhecidos conseguiu preencher uma lacuna entre as obras juvenis da época. Qual foi o segredo desse incrível sucesso?
Escrito nos primeiros anos do século XX, o livro de Lucy Maud Montgomery, embora em grande parte inspirado pela literatura contemporânea, situou-se em oposição às tendências dominantes do seu tempo. Abordando os problemas sociais retratados antes nas obras da era vitoriana, Montgomery foi capaz de apresentá-los de uma nova e revivificante perspectiva. O seu romance mostrou o mundo dos adultos visto pelos olhos de uma criança, e não o contrário, como era comum até então.
Esse conceito original foi ditado à autora pela sua própria vida. Montgomery nasceu em 1874 em Clifton, na Ilha Príncipe Eduardo, Canadá. Sua mãe, Clara Woolner Macneill Montgomery, morreu de tuberculose quando a criança tinha menos de dois anos de idade. O pai, John Hugh Montgomery, deixou a província e estabeleceu-se no oeste do país. Lucy passou a infância sob o cuidado dos avós em Cavendish, uma pequena aldeia litorânea, e foi criada por eles sob a severa disciplina típica da cultura britânica do século XIX. As marcantes experiências daquele tempo e as emoções a elas relacionadas, das quais Montgomery nunca se esqueceu, permitiram-lhe criar uma genuína figura juvenil – um ser humano com vida sentimental própria, e não uma cópia menor de pessoa adulta.
Ao contrário dos seus precedentes literários, Anne Shirley convive plenamente com o mundo à sua volta, apresentando uma sincera e ao mesmo tempo bastante crítica atitude em relação a ele. Esse individual modo de pensar é exatamente o que permite distinguir a personagem criada por Montgomery de uma protagonista infantil convencional. Anne de Green Gables mostra o processo de amadurecimento de uma menina sensível que em sua inteligência analisa a realidade ao seu redor e tira das suas observações conclusões próprias. Na literatura da época, a criança era uma figurinha de papel, um mero pretexto para uma história com mensagem moral. Montgomery, desenvolvendo o conceito de Mark Twain, autor das famosas Aventuras de Tom Sawyer, transformou-a num autêntico e completo ser psicológico que ao longo da ação do romance evolui, passando por vários dilemas e conflitos internos. Não a privou, contudo, dos privilégios da juventude. Anne descobre os lados positivos e negativos da existência, no entanto, mesmo dotada desse conhecimento, consegue manter um vivo interesse pelo mundo e sempre achar um motivo para a alegria.
Sendo uma encantadora história juvenil, Anne de Green Gables é também um vivo e sagaz comentário sobre o mundo fundado nos princípios vitorianos. Embora crescida numa pequena vila canadense, a autora tinha um vasto conhecimento da realidade social do seu tempo e da literatura que a refletia. O seu romance é, portanto, tecido de alusões às normas e às ideias da época, frequentemente contestadas pela inocente personagem principal, para a qual as convenções sociais parecem não existir. Ao contrário de Oliver Twist, de Charles Dickens, ou Elsie Dinsmore, de Martha Finley, Anne Shirley está muito longe de ser uma criança ideal. As suas virtudes têm um contrapeso em faltas. Acompanhamos as suas peripécias na escola, os pequenos e engraçados enganos cometidos nos afazeres domésticos e as explosões do seu temperamento, que sempre a mete em apuros. A paixão de viver, a capacidade de apreciar o dia de hoje e a charmosa tagarelice da menina, embora finalmente conquistem todos à sua volta, no início causam desconfiança, pois não correspondem às normas contemporâneas de educação, segundo às quais uma criança deveria ser vista, mas nunca ouvida. As preocupações de Anne com a sua própria aparência também não lhe facilitam a vida entre os adultos. Desejando ser bonita de acordo com os modelos estéticos do começo do século XX, a ruiva e sardenta menina cai na armadilha da própria sociedade hipócrita, que de um lado valoriza qualidades externas e de outro condena a vaidade.
Lucy Maud Montgomery situa a sua personagem num maravilhoso ambiente natural. As paisagens da Ilha Príncipe Eduardo, terra natal da autora, encantam a criança e inspiram a sua rica imaginação. A natureza realiza um papel importante em vários e também juvenis textos da época, durante a qual as consequências do progresso civilizatório começam a ser percebidas. Todavia, enquanto Frances
Hodgson Burnett, em O Jardim Secreto, glorifica as propriedades medicinais do contato com o mundo natural, Montgomery propõe uma perspectiva inovadora. No seu texto, o meio ambiente não é mais um instrumento nas mãos humanas nem um fundo decorativo dos acontecimentos, mas sim um independente, porém amistoso, ser vivo. O ciclo de transformações anuais da natureza acompanha e complementa as mudanças na vida do homem, deixando a certeza de que tudo o que existe é parte de uma totalidade maior. Como Robert Browning, declarado panteísta cujas palavras formam o lema de Anne de Green Gables, Montgomery parece acreditar que a divindade se revela na natureza. É por isso que os versos do autor vitoriano pós-romântico, nos quais grandes forças do mundo vivo evocam uma atmosfera misteriosa junto à poesia de Alfred Tennyson, em que as crenças do povo se misturam com lendas e mitos clássicos, permeiam o romance, sendo introduzidos como leituras da imaginativa Anne. Ao construir uma vasta rede de alusões literárias, Montgomery não só aprofunda motivos singulares, mas também contextualiza a sua obra, incluindoa numa corrente da cultura contemporânea.
Embora no intrigante enredo de Anne de Green Gables as influências locais da Ilha Príncipe Eduardo recebam enorme importância, também estão presentes nele alguns elementos metropolitanos ou mesmo globais. Tendo sua origem nas revistas internacionais lidas pela autora à procura de inspiração, esses estilhaços de um grande mundo servem como contraponto às imagens de uma pequena e tranquila província canadense, ainda que sublinhando os seus valores. Pois o lugar da infância, protegido nas mais caras memórias, permanece como ponto de referência e inatingível modelo a todos os outros, conhecidos apenas na vida adulta.
O distante mundo de capas coloridas foi refletido também na imagem da protagonista. Como Irene Gammel afirma no seu livro Looking for Anne, a figura do romance é uma compilação de órfã pobre e garota reluzente. “Se dentro de mim houvesse apenas uma Anne, seria tão mais confortável, mas por outro lado nem pela metade tão interessante” – ela diz sobre si mesma. O fato de Anne ser o resultado de uma composição de fragmentos explica a sua incrível popularidade entre os leitores de culturas tão diversas, como a polonesa e a japonesa.
Entretanto, não há dúvidas de que Anne, em toda a sua complicação, em grande parte é um mais afortunado alter ego de Lucy Maud Montgomery, que passou a infância transformando as suas visões em contos e poesias. Chamada pela família de “Maud”, a criadora de uma das mais famosas heroínas juvenis de todos os tempos projetou nela a sua própria fome de amor e apreciação, a sua solidão, determinação e ambição. O romance revelou-se então um jeito de introduzir o velho sonho na realidade e, em alguns aspectos, até ultrapassá-lo. Pois, graças ao dom de descrever o seu mundo íntimo, Montgomery conseguiu lançar-se de uma pequena vila na costa leste do Canadá para o iluminado palco mundial e tornar-se instantaneamente mulher de sucesso, derrubando de uma só vez várias convenções da época. A sua alta posição social, comprovada pela boa formação em Prince of Walles College (onde recebeu a licença de professora) e na Dalhousie University, na Nova Escócia, não lhe recompensou, porém, a sensação de perda na vida privada. Os problemas da realidade acharam solução no mundo da ficção. Apesar de várias dificuldades, Anne Shirley atinge enfim a felicidade que tanto almejou a sua criadora.
Logo após o sucesso do romance, Montgomery mudou-se com o seu marido para Ontário. Lá escreveu mais onze volumes, nos quais a história de Anne foi continuada. Embora a autora não tenha conseguido alcançar neles o nível de grandeza da primeira parte do ciclo, os seus livros até hoje gozam da apreciação dos leitores cujas emoções foram conquistadas pela simpática heroína de cabelos vermelhos.
Lucy Maud Montgomery faleceu em 24 de abril de 1942, em Toronto, ano em que os seus livros pela primeira vez foram publicados no Canadá. Foi enterrada em Cavendish, perto de tudo o que amou tanto nos anos da juventude. O mundo da sua extraordinária imaginação permanece aberto para todos os que quiserem conhecê-lo. Habitado por multidimensionais, vivas e características personagens, é uma infinita fonte de humor sagaz, reflexão e autêntica emoção. É um mundo amável, fascinante em sua riqueza, surpreendente e, ainda assim, harmonioso. Participar dele nos dá uma prazerosa e – nos tempos em que vivemos – inestimável sensação de que tudo na vida tem o seu sentido e vai em apropriada direção. Resta esperar que o velho mundo equilibrado de Anne de Green Gables possa sobreviver nos jovens leitores.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Anne de Green Gables - L. M. Montgomery
SonstigesUma menina de 11 anos, com cabelos ruivos, sardas e uma mente tão perspicaz quanto a de um cientista em busca de conhecimento, chega a uma terra onde as tardes são calmas; os pores do sol, alaranjados; as florestas, aconchegantes; e os rios suaves...