M
arilla largou o tricô no colo e recostou-se na cadeira. Seus olhos estavam cansados, e ela pensou vagamente que deveria mudar as lentes dos óculos na próxima vez que fosse à cidade, porque seus olhos estavam ficando muito fracos ultimamente.
Estava quase escuro, o pleno entardecer de novembro caíra em volta de Green Gables, e a única luz acesa na cozinha vinha das chamas vermelhas que dançavam na lareira.
Anne estava sentada à moda turca em cima do tapete na frente do fogo olhando para o brilho alegre das chamas onde os raios do sol de cem verões estavam sendo destilados da pilha das toras dos bordos. Ela estava lendo, mas o livro escorregou para o chão, e agora estava sonhando, com um sorriso nos lábios entreabertos. Castelos cintilantes na Espanha criavam forma nos nevoeiros e nos arcos-íris da sua vívida imaginação; aventuras maravilhosas e fascinantes estavam acontecendo com ela na sua terra da fantasia, que sempre terminavam em triunfo, e nunca a envolviam em confusões iguais àquelas da vida real.
Marilla olhou para ela com uma ternura que jamais permitiria que fosse revelada em qualquer claridade mais nítida do que em meio àquela mistura de sombras e luz do fogo. A lição de um amor que deveria se externar em palavras e olhares, sem barreiras nem dificuldade, era um amor que Marilla nunca aprenderia. Contudo, devido à sua própria inexpressividade, ela aprendera a amar essa menina magra, de olhos cinzentos, com uma afeição tanto mais profunda e mais forte. Seu amor certamente a fazia temer ser indulgente em excesso. Ela tinha a sensação incômoda de que gostar tanto de qualquer criatura humana como ela gostava de Anne era um pouco pecaminoso, e talvez, ao ser mais severa e mais crítica, como se a menina lhe fosse menos querida, ela estivesse cumprindo uma penitência inconsciente. Anne certamente não fazia a menor ideia do quanto Marilla a amava. Com uma ponta de tristeza, ela às vezes achava que era muito difícil agradar Marilla, e que era evidente que lhe faltava um pouco de compaixão e compreensão. No entanto, ela sempre interrompia esses pensamentos com repreensão quando lembrava o quanto devia a Marilla.
– Anne – disse Marilla, de repente –, hoje à tarde, enquanto você estava lá fora com Diana, a srta. Stacyesteve aqui.
Anne teve um sobressalto, deu um suspiro e voltou do seu outro mundo.
– É mesmo? Oh, que pena que eu não estava. Por que não me chamou, Marilla? Diana e eu só estávamos lá na Floresta Mal-Assombrada. A floresta é linda nesta época do ano. Todas as pequenas coisas das árvores – as samambaias e as folhas acetinadas e as frutas dos cornisos – acabaram de adormecer, como se alguém as tivesse colocado na cama debaixo de um cobertor de folhas até a primavera. Eu acho que quem fez isso foi uma fadinha cinzenta com um lenço da cor do arco-íris amarrado em volta do pescoço, e que passou nas pontas dos pés por ali. Bem, Diana não quis falar muito sobre isso. Diana nunca esqueceu a bronca que levou da mãe por ficar imaginando fantasmas na Floresta Mal-Assombrada. A bronca causou um efeito péssimo na imaginação de Diana. Ela a apagou. A sra. Lynde disse que Myrtle Bell é um ser apagado. Perguntei a Ruby Gillis por que Myrtle era apagada, e Ruby disse que ela achava que era porque seu namorado havia voltado para ela. Ruby Gillis só pensa em namorados, e quanto mais envelhece, pior fica. Namorados são ótimos quando ficam nos seus lugares, mas misturá-los em tudo não adianta nada, não é? Diana e eu estamos pensando seriamente em prometer uma à outra que nunca casaremos, mas que nos tornaremos duas solteironas velhas e gentis, e que moraremos juntas para sempre. Mas Diana ainda não se decidiu, porque ela acha que talvez seria mais nobre casar com um rapaz selvagem, arrojado e pecaminoso, para reformá-lo. Sabe, Diana e eu conversamos muito sobre assuntos sérios agora. Nós nos sentimos tão mais adultas do que antes que não fica bem conversar sobre assuntos infantis. Ter quase catorze anos é algo muito solene, Marilla. Na quarta-feira passada, a srta. Stacy levou todas as meninas que estão na adolescência até o riacho e conversou conosco a respeito. Ela disse que deveríamos ter muito cuidado com os hábitos que criamos e os ideais que adquirimos na adolescência porque, quando completarmos vinte anos, nossa personalidade e nossa base estarão formadas para o resto de nossas vidas futuras. E ela disse que se a base não for sólida, nós nunca conseguiremos construir algo que realmente tenha algum valor em cima dela. Diana e eu conversamos a respeito, quando voltamos da escola. Nos sentimos muito solenes, Marilla. E decidimos que tentaremos ser realmente muito cuidadosas e formar hábitos respeitáveis e aprender tudo o que pudermos para sermos tão sensatas quanto for possível para que nossa personalidade esteja devidamente desenvolvida quando completarmos vinte anos. É perfeitamente chocante só de pensar em ter vinte anos, Marilla. Soa tão horrivelmente velho e adulto. Mas, por que a srta. Stacy passou aqui hoje à tarde?
– É o que eu quero contar para você, Anne, se você me der a oportunidade de enfiar uma palavra detravés em algum momento. Ela veio conversar sobre você.
– Sobre mim? – perguntou Anne, parecendo muito assustada. Depois enrubesceu e disse: – Oh, eu sei oque ela veio fazer aqui. Eu quis contar para você, Marilla, pode acreditar, mas esqueci. Ontem de tarde, a srta.
Stacy me pegou lendo Ben Hur na escola, quando eu devia estar estudando minha história do Canadá. Foi Jane Andrews quem me emprestou o livro. Eu o estava lendo na hora do almoço, e estava justamente no pedaço da corrida de bigas quando os alunos voltaram para a sala de aula. Teria sido uma loucura ficar sem saber como a corrida terminou – mesmo se eu tivesse certeza de que Ben Hur ganharia, porque não seria uma justiça poética se não ganhasse –, então abri o livro de História em cima da tampa da carteira e enfiei Ben Hur entre a carteira e meus joelhos. Parecia que eu estava estudando a história do Canadá, sabe, enquanto eu estava me deleitando com Ben Hur o tempo todo. Eu estava tão interessada no livro que nem percebi quando a srta. Stacy se aproximou entre as carteiras até que, de repente, levantei os olhos e lá estava ela olhando para mim, de um modo tão repreensivo. Você não imagina como fiquei envergonhada, Marilla, principalmente quando ouvi as risadinhas de Josie Pye. A srta. Stacy não disse uma única palavra, mas levou Ben Hur com ela. Durante o recreio, ela ficou na sala e conversou comigo. Ela disse que eu havia errado em dois aspectos: primeiro, que eu estava usando um tempo que deveria ser gasto com meus estudos; segundo, que eu estava enganando a minha professora quando fingia que estava lendo o livro de História enquanto, na verdade, lia um romance. Marilla, até aquele momento eu nunca havia percebido que o que eu estava fazendo era fingimento. Fiquei chocada. Chorei muito, e pedi à srta. Stacy que me perdoasse e prometi que nunca mais repetiria aquilo; eu me ofereci para fazer uma penitência e prometi que não olharia para Ben Hur durante uma semana inteira, nem ao menos para tentar saber como a corrida de bigas terminava. Mas a srta. Stacy disse que não ia exigir isso de mim, e ela me perdoou completamente. Então, eu acho que não foi nada gentil da parte dela vir aqui para falar com você a respeito.
– A srta. Stacy nunca tocou nesse assunto comigo, Anne, e seu único problema é sua consciência culpada. Você não tem nada que ficar levando livros de histórias para a escola. De qualquer forma, você já lê romances demais. Quando eu era menina, eu não tinha permissão para sequer olhar para um romance.
– Oh, como é que você pode chamar Ben Hur de um romance quando na verdade é um livro religioso? – protestou Anne. – Claro que é uma leitura um pouco excitante demais para os domingos, mas eu só o leio durante a semana. E agora não vou ler livro nenhum a não ser que a srta. Stacy ou a sra. Allan achem que é um livro apropriado para uma menina de treze anos e ¾ ler. A srta. Stacy me fez prometer. Um dia, ela me pegou lendo um livro chamado O mistério apavorante do salão mal-assombrado. Foi Ruby Gillis quem me emprestou e, oh, Marilla, a história era tão fascinante e apavorante. O livro simplesmente fez meu sangue gelar nas minhas veias. Mas a srta. Stacy disse que era muito bobo e nada saudável, e me pediu para parar de ler o livro, ou qualquer um parecido com ele. Eu não me importei de prometer que não leria mais livros como aquele, mas foi uma agonia devolvê-lo sem saber o final. Mas parei, e meu amor pela srta. Stacy passou pelo teste. É realmente maravilhoso, Marilla, o que você pode fazer quando está realmente ansiosa para agradar uma pessoa.
– Bom, eu acho que vou acender a lâmpada e continuar com meu trabalho – disse Marilla. – Vejo perfeitamente que você não quer saber o que a srta. Stacy veio dizer. Você está mais interessada no som da sua própria voz do que em qualquer outra coisa.
– Oh, Marilla, claro que quero saber o que ela disse – gritou Anne, arrependida. – Eu não vou dizer nemmais uma palavra! Nem uma! Eu sei que falo demais, mas eu estou realmente tentando superar isso e, mesmo falando demais, se você soubesse quantas coisas eu quero dizer e não digo, você me daria algum crédito por isso. Por favor, Marilla, conte.
– Bem, a srta. Stacy quer organizar algumas aulas para os alunos mais adiantados que vão estudar para ovestibular do Queen’s. Ela pretende dar aulas extras durante uma hora depois da escola. E ela veio perguntar para Matthew e para mim se nós gostaríamos que você participasse. O que acha, Anne? Você gostaria de estudar no Queen’s e se tornar uma professora?
– Oh, Marilla! – exclamou Anne, esticando as pernas e batendo palmas. – É o sonho da minha vida...isso é, nos últimos seis meses, desde que Ruby e Jane começaram a falar que vão se preparar para o vestibular. Mas eu não disse nada porque achei que seria perfeitamente inútil. Eu adoraria ser uma professora. Mas não vai ser horrivelmente caro? O sr. Andrews disse que teve de pagar cento e cinquenta dólares para Prissy entrar, e Prissy não era nenhuma ignorante em Geometria.
– Eu acho que você não precisa se preocupar com essa parte. Quando Matthew e eu decidimos criá-la,resolvemos que faríamos o melhor por você para que tivesse uma boa educação. Eu acredito que uma moça deve poder ganhar a própria vida, tenha necessidade ou não. Enquanto Matthew e eu estivermos aqui, você sempre terá um lar em Green Gables, mas ninguém sabe o que vai acontecer neste mundo incerto, e é melhor estar bem preparada. Você pode entrar para as aulas para o vestibular do Queen’s se quiser, Anne.
– Oh, Marilla, muito obrigada. – Anne jogou os braços em volta da cintura de Marilla e olhou muito séria
para seu rosto. – Eu sou extremamente agradecida a você e a Matthew. E estudarei o máximo que puder e farei o melhor que puder para merecer tudo isso. Eu vou logo avisando que não esperem demais em Geometria, mas acho que posso ser boa em qualquer outra matéria se estudar com afinco.
– Eu acredito que você será boa o suficiente em tudo. A srta. Stacy disse que você é inteligente e esforçada.
Marilla não contaria a Anne tudo que a srta. Stacy havia dito sobre ela por nada neste mundo; seria paparicar a sua vaidade.
– Você não precisa se esforçar demais e chegar ao extremo de se matar nos seus estudos. Não há pressa. Você só estará preparada para tentar o vestibular daqui a um ano e meio. Mas, como disse a srta. Stacy, é bom começar cedo para ter uma boa base.
– A partir de agora eu me interessarei mais do que nunca pelos meus estudos – disse Anne, extasiada –,porque terei um objetivo na vida. O sr. Allan disse que todo mundo deveria ter um objetivo na vida, e que nunca devemos deixar de persegui-lo. Ele também disse que, antes de ir atrás do objetivo, devemos ter certeza que ele é digno de merecimento. Eu chamaria querer ser uma professora como a srta. Stacy um objetivo digno de merecimento, você não concorda, Marilla? Eu acho que é uma profissão muito nobre.
As aulas para o Queen’s foram organizadas no tempo devido. Gilbert Blythe, Anne Shirley, Ruby Gillis, Jane Andrews, Josie Pye, Charlie Sloane e Moody Spurgeon MacPherson se juntaram a elas. Diana Barry não, porque seus pais não tencionavam mandá-la para o Queen’s. Para Anne foi quase uma calamidade. Ela e Diana nunca haviam se separado para nada desde a noite que Minnie teve crupe. Na tarde em que a classe do Queen’s permaneceu pela primeira vez na escola para as aulas extras e Anne viu Diana ir embora devagar com os outros, e depois caminhar sozinha pela Trilha das Bétulas e pelo Vale das Violetas, ela precisou fazer um grande esforço para permanecer sentada e não sair correndo impulsivamente atrás da amiga. Ela sentiu um bolo na garganta e enfiou-se rapidamente atrás das páginas da gramática de Latim para esconder as lágrimas em seus olhos. Anne não deixaria por nada deste mundo que Gilbert Blythe ou Josie Pye vissem aquelas lágrimas.
– Mas, oh, Marilla, quando vi Diana ir embora sozinha, eu realmente senti que havia provado “o amargorda morte1”, como o sr. Allan disse no domingo passado durante o sermão – lamentou-se Anne naquela noite, muito triste. – Eu imaginei como teria sido esplêndido se Diana também estivesse estudando para o vestibular. Mas, como disse a sra. Lynde, não podemos querer que as coisas sejam perfeitas neste mundo imperfeito. Às vezes a sra. Lynde não é exatamente uma pessoa reconfortante, mas ela certamente diz muitas coisas muito verdadeiras. E eu acho que as aulas para o Queen’s serão extremamente interessantes. Jane e Ruby vão estudar para ser professora. Para elas, é o máximo das suas ambições. Ruby disse que pretende se casar, então, depois que se formar, só ensinará durante dois anos. Jane disse que dedicará sua vida inteira ao ensino e nunca, nunca se casará, porque você recebe um salário para ensinar, enquanto um marido não paga nada e começa a resmungar quando você pede a ele um pouco de dinheiro para comprar ovos e manteiga. Eu acho que Jane fala de uma experiência infeliz, porque a sra. Lynde comentou que o pai dela é um velho excêntrico perfeito, que é “pior do que daquele que quer ser mais do que é porque se torna pior do que era2”. Josie Pye disse que só vai à faculdade por causa da educação, pois não vai precisar ganhar a vida; ela disse claro que era diferente para os órfãos que vivem de caridade – porque esses precisam dar duro. Moody Spurgeon vai ser pastor. A sra. Lynde disse que, com um nome daqueles, ele nunca poderia ser outra coisa na vida. Eu espero que não seja maldade minha, Marilla, mas é verdade que eu não posso deixar de rir quando imagino Moody Spurgeon como pastor. Ele é um menino tão engraçado com aquele rosto grande e gordo, e os olhinhos azuis e as orelhas de abano. Mas, talvez, quando crescer, se pareça mais com um intelectual. Charlie Sloane disse que vai entrar para a política e se tornar um membro do Parlamento, mas a sra. Lynde disse que ele nunca chegará lá porque os Sloane são pessoas honestas, e hoje em dia só malandros entram para a política.
– E Gilbert Blythe vai ser o quê? – perguntou Marilla, quando viu Anne abrir o livro sobre Júlio César.
– Eu não faço a menor ideia qual ambição Gilbert Blythe tem na vida – se é que tem alguma –, respondeuAnne com desprezo.
Agora havia uma rivalidade aberta entre Gilbert e Anne. Antes ela havia sido mais unilateral, mas agora não havia nenhuma dúvida de que Gilbert estava determinado a ser também o primeiro da classe, assim como Anne. Ele era um inimigo digno da sua têmpera. Os outros alunos da classe reconheciam a superioridade deles tacitamente e jamais sequer sonhavam em tentar competir com eles.
Desde aquele dia no lago, quando ela se recusou a atender seu apelo para que o perdoasse, e com exceção da rivalidade incontestável supramencionada, Gilbert não esboçava o menor reconhecimento em relação à existência de Anne Shirley. Ele conversava e brincava com as outras meninas, trocava livros e quebra-cabeças com elas, discutia as lições e os projetos, e às vezes acompanhava uma ou outra até em casa depois dos encontros de orações no Clube de Debates. No entanto, ele simplesmente ignorava Anne Shirley, e Anne descobriu como era desagradável ser ignorada. E era inútil dizer para si mesma, jogando a cabeça para trás, que não se importava. Bem no fundo do seu coraçãozinho feminino e caprichoso, ela sabia que se importava sim, e que se tivesse outra oportunidade como aquela no Lago de Águas Cintilantes ela teria reagido de forma muito diferente. Muito consternada intimamente, descobriu que o velho ressentimento que acalentava contra Gilbert desaparecera de repente de um dia para o outro – justo quando ela mais precisava do amparo da sua força. Ela relembrou, em vão, cada incidente e cada emoção daquela ocasião memorável e tentou sentir novamente a antiga raiva tão satisfatória. Aquele dia no lago testemunhou o último espasmo da última faísca. Anne entendeu que havia perdoado e esquecido sem saber. Mas era tarde demais.
E nem Gilbert, nem ninguém, nem mesmo Diana, jamais deveriam suspeitar de como ela lamentava tudo isso e quanto desejava não ter sido tão orgulhosa e horrível! Ela estava decidida a “mergulhar seus sentimentos no mais profundo esquecimento” e é preciso reconhecer aqui e agora que ela o fez com tanto êxito que Gilbert, que provavelmente não era tão indiferente a ela como parecia, não conseguiu consolar-se com a crença de que Anne sentia seu desprezo em represália ao dela. Seu único e pobre conforto era que ela desdenhava de Charlie Sloane o tempo todo, sem piedade e sem que ele o merecesse.
Fora isso, o inverno passou numa sequência agradável de deveres e estudos. Para Anne, os dias passaram como contas douradas do colar do ano. Ela estava alegre, ansiosa, interessada; havia lições para aprender e honras a ser ganhas; livros maravilhosos para ler; novas canções a serem aprendidas para o coro da escola dominical; tardes de sábados agradáveis com a sra. Allan no presbitério; e então, antes que percebesse, a primavera chegou novamente a Green Gables, e o mundo inteiro ficou florido mais uma vez.
A partir daí, os estudos empalideceram apenas um pouquinho; aqueles que estudavam para o Queen’s e que ficavam para trás, enquanto as outras classes se espalhavam pelas veredas verdes, pelas trilhas dos bosques cobertos de folhas e pelos atalhos através das campinas, olhavam melancólicos pelas janelas e descobriam que os verbos de Latim e os exercícios de Francês haviam, de alguma forma, perdido o gosto e o entusiasmo dos meses frios. Até Anne e Gilbert protelavam, e se tornaram indiferentes. Quando o período terminou e os dias de férias despreocupados surgiram diante deles, tanto a professora quanto os estudantes ficaram contentes e felizes.
– Vocês trabalharam muito no ano passado – cumprimentou-os a srta. Stacy na última tarde de aula – emerecem umas boas férias, com muita diversão. Aproveitem o mundo lá fora ao máximo e façam uma boa reserva de saúde, vitalidade e ambição para aguentar o ano que vem. O último ano antes do vestibular será uma disputa acirrada.
– A senhorita vai voltar no ano que vem, srta. Stacy? – perguntou Josie Pye.
Josie Pye nunca tinha escrúpulos para fazer perguntas; e naquele momento toda a classe ficou grata a ela; nenhum deles teria ousado fazer essa pergunta para a srta. Stacy, embora todos desejassem fazê-la, porque há algum tempo por toda a escola corria o boato alarmante de que a srta. Stacy não retornaria no ano que vem – e que lhe haviam oferecido uma posição numa escola primária no seu distrito natal que ela pretendia aceitar. A classe do Queen’s ficou em silêncio e prendeu a respiração para ouvir a resposta.
– Sim, acho que vou. Eu pensei em ensinar em outra escola, mas decidi permanecer em Avonlea. Paradizer a verdade, fiquei tão interessada nos meus alunos aqui que descobri que não poderia deixá-los. Então vou ficar e acompanhar vocês até o final.
– Hurrá! – gritou Moody Spurgeon.
Moody Spurgeon nunca se deixou entusiasmar tanto por seus sentimentos e, durante uma semana, sempre que se lembrava daquele momento, corava de maneira muito desconfortável.
– Oh, eu estou tão contente – disse Anne, com os olhos brilhando. – Querida srta. Stacy, seria perfeitamente horrível se não voltasse. Eu acho que não teria coragem de continuar com meus estudos se outra professora viesse para cá.
Quando Anne chegou em casa naquela noite, ela guardou os livros dentro de um velho baú no sótão, trancou-o e jogou a chave dentro da caixa dos cobertores.
– Eu não vou nem olhar para um livro da escola nas férias – informou para Marilla. – Estudei tanto quanto podia durante todo o período e examinei em detalhes aquela tal de Geometria até saber cada proposição do primeiro livro de cor e salteado, mesmo quando as letras estão invertidas. Eu simplesmente estou cansada de tudo o que é sensato, e neste verão eu vou deixar minha imaginação correr solta. Oh, não precisa ficar alarmada, Marilla. Eu só vou deixar que corra solta dentro dos limites do razoável. Mas eu quero me divertir muito neste verão, porque talvez seja o último verão que ainda serei uma menininha. A sra. Lynde disse que, se no ano que vem eu continuar esticando, como aconteceu neste ano, terei de usar saias mais compridas. Ela disse que minha tendência é me tornar toda pernas e olhos. E, quando colocar saias mais compridas, sentirei que precisarei honrá-las, e manter um porte muito digno. Então, como eu acho que não poderei mais acreditar em fadas, vou acreditar nelas de todo coração neste verão. Acho que minhas férias serão muito alegres. Ruby Gillis vai dar uma festa de aniversário logo, e no mês que vem haverá o piquenique da escola dominical e o recital dos Missionários. E o sr. Barry disse que qualquer tarde dessas ele vai nos levar, Diana e eu, para almoçar no Hotel White Sands. Sabe, eles servem almoço lá de tarde. Jane Andrews esteve lá uma vez no verão passado, e ela contou que as luzes elétricas e as flores e todas as hóspedes com seus vestidos maravilhosos são uma visão deslumbrante. Jane disse que foi seu primeiro vislumbre de vida luxuosa e que ela vai se lembrar dele até morrer.
A sra. Lynde passou na tarde do dia seguinte para saber por que Marilla não compareceu à reunião beneficente na quinta-feira. Todos sabiam que havia algo errado em Green Gables quando Marilla não comparecia à reunião beneficente.
– Matthew passou mal do coração na quinta-feira – explicou Marilla –, e achei melhor ficar com ele. Oh,sim, ele já está bem, mas passa mal com mais frequência do que costumava, e eu fico preocupada com ele. O médico disse que precisa se cuidar e evitar excitações. O que é muito fácil, porque Matthew nunca anda por aí atrás de excitações, nunca o fez, mas ele também não deve fazer nenhum trabalho pesado, e dizer para Matthew parar de trabalhar é o mesmo que pedir que pare de respirar. Entre, Rachel, tire o casaco. Vai ficar para o chá?
– Bem, já que você insiste, talvez seja melhor ficar, sim – respondeu a sra. Rachel, que não tinha a menor intenção de fazer outra coisa.
A sra. Rachel e Marilla sentaram-se confortavelmente na sala de visitas, enquanto Anne preparava o chá e assava biscoitos fresquinhos, tão leves e brancos que desafiariam até as críticas da sra. Rachel.
– Eu tenho de admitir que Anne se tornou uma menina realmente esperta – confessou a sra. Rachel,quando Marilla a acompanhou até o final da vereda no pôr do sol. – Ela deve ser uma grande ajuda para você.
– Ela é – confirmou Marilla –, e agora que encontrou seu ponto de equilíbrio, eu posso depender dela. Eucostumava ter medo de que ela nunca superasse aquele jeito avoado, mas ela superou, e agora não tenho mais medo de confiar a ela o que quer que seja.
– No primeiro dia que estive aqui, há três anos, eu não imaginava que ela pudesse ficar desse jeito –admitiu a sra. Rachel. – Eu juro de todo coração que nunca esquecerei aquele chilique dela! Quando voltei para casa naquela noite, eu disse para o Thomas, disse sim, “preste atenção, Thomas, Marilla Cuthbert vai se arrepender pelo resto da vida de ter dado esse passo”. Mas eu estava enganada e estou muito contente por isso, de verdade. Marilla, eu não sou aquele tipo de pessoa que nunca consegue admitir que cometeu um erro. Não, nunca fui assim, graças a Deus. Errei no meu julgamento de Anne, o que não é de se espantar, porque nunca houve uma criança mais esquisita como essa bruxinha, de quem se podia esperar qualquer coisa, essa é a verdade. Não havia como mantê-la sob controle seguindo as regras que funcionavam com as outras crianças. É realmente maravilhoso como ela progrediu nesses três anos, especialmente na aparência. Ela está tão bonita como uma menina deve ser, embora eu precise dizer que, pessoalmente, eu não simpatize muito com aquele jeito pálido e aqueles olhos grandes. Eu prefiro mais vivacidade e cor, como Diana Barry ou Ruby Gillis têm. A aparência de Ruby Gillis é muito atraente. Mas, de alguma forma, a gente só percebe isso quando elas e Anne estão juntas, porque, apesar de não ser nem um pouco tão bonita quanto elas, ela as faz parecer um pouco lugar-comum e exageradas – algo como aqueles lírios brancos de junho, que ela chama de narcisos e que crescem do lado das peônias vermelhas, essa é a verdade.1 Trecho de I Samuel 15,32. (N. T.)
2 “Meaner than second skimmings”, no original. Quando se remove a nata do leite pela segunda vez ela já não é tão boa nem tão espessa como a primeira. Portanto, ser “meaner than second skimmings” significa ser ainda pior do que a segunda nata. (N. T.)
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Anne de Green Gables - L. M. Montgomery
RandomUma menina de 11 anos, com cabelos ruivos, sardas e uma mente tão perspicaz quanto a de um cientista em busca de conhecimento, chega a uma terra onde as tardes são calmas; os pores do sol, alaranjados; as florestas, aconchegantes; e os rios suaves...