Ao acordar naquela fria manhã de domingo, que chegara calmamente com o inverno, ouvi as gargalhadas de Dante, vindas da cozinha, as paredes finas daquele velho casarão já não guardavam algo mais alto que um sussurro. Dante estava conversando com Beth enquanto ela fazia o café da manhã, e o rádio chiava baixinho.
Talvez eles estejam ouvindo um desses programas matinais do qual eles tanto adoram. Pensei, sorrindo ao lembrar das diversas vezes em que tentei ensiná-los a sintonizar melhor o rádio para que ele não chiasse tanto como agora.
Todos os domingos e feriados desde que nos conhecemos, eu sempre fui acordada da mesma forma, com os risos e gargalhadas espalhafatosas de Dante. Ás vezes quando ele cantarolava alguma canção e acabava esquecendo a letra, Dante tentava cantar com a voz mais aguda que alcançasse, cantando uma letra incompreensivo, e isso fazia Beth rir, e ele adorava a risada dela, achava tão engraçado o som, que mais parecia a risada de um papai Noel rouco. Então ele gargalhava tão alto que acabara me acordando. E ainda sonolenta, eu caminhava até a cozinha, enquanto Dante cantarolava diversas vezes a mesma estrofe.
"... It' s easy to live... when you are in love..."
Ao olhar para o rosto dele, tão pálido, lembrei-me, tão rapidamente, da forma com a qual ele costumava fechava os olhos ao sorrir, tão lindamente.
E naquele instante, lembrei-me, mesmo nunca tendo esquecido, o quanto ele me amava, tão doce e ingenuamente. O coração bobo daquele pobre rapaz reconhecia o amor. E mesmo que ele estivesse longe de poder me dá uma vida, a vida que ele julgava, que eu, merecia ter. Eu tinha certeza que ele daria tudo para que continuássemos vivendo próximos um do outro, daria inclusive, a sua própria vida para que eu fosse feliz. Já que ele mesmo repetira isso diversas vezes desde que éramos crianças.
Dante era tão nostálgico e sonhador que nem mesmo chegara a ligar para status ou dinheiro de sua família nem para qualquer outra coisa que diziam ser importante na vida. Ele apenas queria ter, ser e fazer as pessoas ao seu redor felizes. Ele aprendera com a mãe a dar o devido valor as coisas simples, aquelas que ele julgava ser importante, independentemente do que viessem a pensar sobre ele.
"As coisas simples da vida, meu filho, essas são as de maior valor". Ela dizia, e Dante sabia muito bem disso.
Naquele instante, ele sentiu que estava sendo observado, que eu o observava da soleira da porta, como sempre costumava fazer. Antes de começar a rir do jeito bobo com que ele cantava ou quando ele andava de um lado para o outro com um pedaço de bolo nas mãos, até me cansar dos ruídos do rádio, então eu tentava manter ele quieto para que pudesse sintonizar melhor o rádio.
Ele brincava de imitar uma estátua, enquanto ficava me observando, depois de alguns segundos, eu lhe perguntava alguma coisa, mas ele não respondia, pois ainda estava imitando uma das estátuas do jardim, eu acabara me irritando e o empurrava e ele caia na gargalhada.
Quando uma canção começou a tocar docemente no rádio, me deixei ser embalada pela melodia. Os livros de Dante estavam largados em cima da mesa, enquanto brincávamos de rimar. Eu sentia falta de como as palavras rimavam sem precisar de esforço algum. A casa estava sempre cheia, desde que meu pai morrera, e eu estava sempre vazia, e às vezes, por mais que adorasse a companhia de Dante, Beth e meu avô, eu sentia falta de estar sozinha comigo mesma.
Por muito tempo o medo se alojara dentro mim como um possuidor de almas desconexas, mas não nesta manhã.
Ao subir as escadas no cair da tarde - quando Dante acabara de ir embora -, voltei a pensar na mulher do quadro. Apesar de nunca ter visto nenhuma foto ou quadro do rosto da minha mãe, cheguei a pensar que aquela mulher poderia sim, ser ela, mas como um quadro poderia chorar? Então, pensei se realmente vi a mulher chorando ou se fora apenas coisa da minha cabeça. Quando eu estava disposta a descobrir quem era a misteriosa mulher do quadro, uma brisa fria atravessou o meu peito, vestindo-me tão purpuramente a pele, a carne sob meus ossos. Cravando-me com seus dentes afiados, rasgando meu peito, dilacerando meu coração que pulsava freneticamente dentro de mim. Agredindo-me aos berros, aos beijos; espancando-me com suas bofetadas ao mesmo tempo que me carregava, tentando me aninhar para junto dela.
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Fragmentária
General FictionAinda não conseguindo discernir nada direito, tentando apenas colocar os pensamentos no lugar. Todas as memórias, todos os fatos ligados, todos os acontecimentos futuros, agora vividos nitidamente através dos meus olhos. É preciso deixar bem claro...