Tímidos feixes de luz invadem meu quarto por uma abertura entre as pesadas cortinas escuras, minhas pálpebras pesadas teimam em me deixar despertar. Minha fraca consciência retorna ao meu corpo aos poucos enquanto meus braços deslizam pelos lençóis brancos em busca de algo que já não me recordo de um dia ter perdido, meus pulsos doem e ao encará-los observo o sangue seco em cada corte desconhecido.
A claridade fere meus olhos que já não buscam mais a luz, uma camiseta visivelmente grande para mim possui as manchas de ferimentos que talvez nunca cicatrizem, memórias de uma época em que as cores eram vibrantes se apagam junto ao brilho destes olhos negros como a noite, arrastando meus pés pelo piso gelado fecho as cortinas. Mais uma vez a escuridão envolve esta casa gelada, restos de alimento se encontram espalhados por todos os cômodos em que passo, o cheiro da morte envolve cada centímetro dessa prisão, puxando a gola da camiseta para perto a cheirei na esperança de mais uma vez sentir o perfume capaz de afastar os pesadelos de minha mente.
Ao chegar na cozinha pude avistar um calendário, não houve a necessidade de ler a pequena anotação no dia de hoje para me lembrar de seu aniversário, consequentemente hoje seria o dia m que finalmente voltaria para casa. A esperança tomou conta de meu corpo ao imaginar que finalmente poderia sentir o calor daquele que amo, sorrindo me apressei para limpar a casa, assim poderia preparar seu bolo preferido.
As horas se passavam enquanto meus pulsos doloridos se abriam novamente tingindo a água, o som de meu coração pulsando ecoava mais uma vez, não me importa a dor ou o desespero das memórias perdidas nesses anos, se puder ver seu sorriso por um breve período então não pedirei mais nada. Na rádio sua voz inebriante canta as histórias de nosso amor, o mel escorre por cada palavra emitida por seus lábios, sua carreira como músico faz com que nosso tempo juntos seja curto devido as viagens para concertos.
A limpeza chegou ao fim assim como a música mais triste de seu repertório, correndo para o banheiro finalmente fui capaz de me limpar, ao sair do box estendi meu braço para pegar uma tesoura e cortar a frente de meu cabelo, talvez em uma memória de quando estudamos juntos e seus dedos deslizavam por meu cabelo. Depois de tanto tempo agora era a hora de finalmente deixar esta casas em busca de ingredientes para sua surpresa.
Tanto tempo fugindo da claridade fez com que precisasse utilizar seus óculos escuros ao caminhar pelas ruas, em meu caminho todos apontavam comentando coisas em sussurros ao me verem passar, talvez imaginem que seu sucesso fez com que me abandonasse. Não me importa o que aconteça nesse dia desde que possa te encontrar e pedir desculpas por nossa briga, a qual nem me recordo o motivo.
No mercado os olhares se tornavam cada vez mais intensos, murmúrios em tons tristes comentavam sobre meus ingredientes e as rosas azuis que eram as suas preferidas apesar de qualquer significado. Já passava do meio dia e em breve você chegaria em casa, entregando o dinheiro sem esperar pelo troco de minha compra corri para casa.
Na cozinha a televisão estava ligada, nos meus braços uma caixa de ovos. De repente o noticiário disse seu nome, uma reportagem sobre sua morte, a força deixava meu corpo conforme as memórias de seu último aniversário, os ovos se quebraram ao atingir o chão, minhas mãos buscavam apoio na mesa ao meu lado, o ranger dos pés da cadeira ardiam em meus ouvidos, meu corpo trêmulo se sentava e olhos queimando ao se tornarem úmidos fitavam intensamente a repórter que narrava o ocorrido do ano anterior.
Aquele dia não o busquei no aeroporto, pois estava em uma tarde de autógrafos. Mas minha presença física não significava que não estávamos um com o outro, ao sair do avião seus dedos discaram meu número e em poucos segundos estávamos nos falando, a alegria em sua voz tornava impossível não sorrir como se fosse a pessoa mais sortuda deste mundo por ter em minha vida alguém que eu pudesse amar com toda minha intensidade e com todo meu ser. Enquanto corria com as flores que comprou para me presentear no caminho da livraria, sua voz se tornava ofegante e cada vez mais animada, breves declarações de amor foram trocadas e um pedido mútuo de desculpas por discutir antes de sua viagem foi dito brevemente dando lugar a uma breve explicação de como seu show havia sido. Estes momentos de breve alegria pareciam durar a eternidade, meu desejo é que este em específico pudesse ter durado...
Ao fundo os gritos de fãs chamando sua atenção ecoavam, então a chamada de voz se tornou uma ligação por vídeo após seu pedido de ver meu rosto o quanto antes, ambos mostramos onde estávamos, enquanto o farol estava vermelho para os pedestres. Estes olhos castanhos estreitos sumiam quando seu sorriso se abria, a pinta em baixo de seu olho esquerdo aumentava o charme de seu rosto, antes que pudesse pensar no que estava para dizer apenas disse que gostaria de encontrar o sol que iluminava minha vida o quanto antes e como resposta ao abrir do sinal você sorriu e disse " apenas me veja correndo até você." infelizmente esta seria a última coisa que veria.
Naquele instante um acidente que tiraria não apenas a sua vida, mas a de mais duas pessoas ocorreu. Um motorista embriagado havia perdido o controle do carro e atingiu aqueles que estavam próximos ao farol, ao ver aquilo não fui capaz de fazer nada além de gritar seu nome em prantos. Após ligar para a emergência corri ao hospital, aguardando por horas o fim de uma cirurgia que não obteria sucesso, naquele dia o sol que iluminava minha vida se apagou, as cores do mundo desbotaram e o breu da noite sem luar me assombrou com a culpa, memórias foram se apagando como uma defesa egoísta de minha mente que preferia esquecer a dor e acreditar que um dia o teria ao meu lado novamente.
Desde aquele dia aguardei pacientemente e continuarei aguardando o momento em que seu rosto estará diante ao meu, todos os dias infligindo dor ao meu corpo para me manter alerta caso em algum momento da madrugada estas portas se abram revelando a sua figura, estas lembranças ruins inundaram minha mente e o desespero assolava minha existência mais uma vez. Foi quando me recortei das cartas escondidas por todos os cantos da casa, as cartas equivalentes aos dias em que passaríamos afastados, corri para subir as escadas e abrir a caixa na qual estavam todas elas, ao sentir seu cheiro emanado daquelas folhas de papel as lágrimas que outrora haviam se secado agora escorriam pelo meu rosto. Os cortes feitos em meu coração pelas lembranças marcadas nestes papeis jamais se fecharão, mas talvez agora seja minha hora de escrever as cartas para meu amor perdido.