A voz

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Meus olhos estavam grudados na letra clássica de traçado fino e curvas impecáveis de meu pai. Ele era o homem mais sensível e elegante que eu conheço. Sempre me pergunto como eu fui me tornar tão moleca e descuidada.

— Cheguei! — Mariana enfiou o rosto alongado de pele morena em frente à carta de meu pai.

— Finalmente! Os passageiros já estão embarcando, eu pensei que fosse ter que fazer isso sozinha — reclamei enquanto tirava as passagens da mochila.

— Pois eu acho que seria mais emocionante! O problema é que eu não gosto de perder nada que acontece de 'extraordinário' nessa vida bobinha que levamos.

Ela jogou os longos cabelos negros para trás e ajeitou a mochila sobre os ombros. Em seguida jogou o braço sobre os meus ombros e me espremeu, antes de entramos no ônibus. Dizemos que somos almas gêmeas: primas, irmãs e amigas inseparáveis. Ela sabia o que eu sentia só de me olhar, por mais que eu me achasse a garota ultra foda em disfarces.

— Você pode ficar com a janela — ela me disse com um sorriso no canto da boca de quem conhecia minha ansiedade. — Agora me deixe ver a carta do tio Marcelo.

Eu a retive em minha mão. Espremi os lábios e neguei com a cabeça. Enfim, li em voz alta o único paragrafo que tive coragem de ler:

Minha querida Lud,

Nossas vidas novamente vão passar por grande mudança. Eu acredito que, desta vez, seja uma mudança feliz, espero que você sinta o mesmo. Para que você entenda que não há substituição e que sua mãe sempre estará em nossas vidas, eu achei que esse era o momento certo de você fazer essa pequena e bela jornada. Vista uma calça confortável e tênis de caminhada. Leve na mochila: água, uma muda de roupas limpas e um biquíni.

Eu fiquei em silêncio. Mariana sacudiu meu braço, como fazia quando éramos crianças.

— Até parece que você não sabe aonde vamos! Afinal, está escrito nas passagens e no letreiro do ônibus. — Ela observou meu silêncio. — Desculpa a ironia, só queria te fazer rir um pouco. Eu sei que isso foi inesperado, eu também me assustei quando a minha mãe me explicou.

— E o que a tia Carla te explicou? Eu acho que sou a única que não ouviu uma só palavra. Meu pai viajou em lua de mel e me deixou essa carta com passagens de ônibus compradas para Santa Clara do Véu com data para o meu aniversário de 16 anos. — Esse fato 'extraordinário' estava me assustando. — E foi só.

Mariana respirou fundo, estava constrangida, como se tivessem deixado para ela a parte mais tensa da missão.

— Bem, vou te dizer exatamente o que a minha mãe falou, ok? — Ela passou a língua nos lábios antes de recomeçar. — Seu pai namora a tia Ângela há cinco anos, já passava da hora deles se casarem. Eu achei sinceramente que você estava de acordo.

— Você pirou, Mari? Não é disso que eu estou falando! Eu gosto muito da Ângela, sabia que meu pai queria ter se casado há anos, só que tinha medo de me magoar...

— E você está magoada? — A pergunta foi feita vagarosamente como se tivesse medo de causar mais estragos.

— Mari, você me conhece... — Ela arqueou as sobrancelhas e inclinou levemente a cabeça para a esquerda. — Ok! Eu estou com medo disso e também disto. — Eu sacudi a carta.

— Então leia até o final!

— Primeiro vamos chegar nessa cidadezinha, depois leio mais. — Eu olhei para fora da janela.

— Isso é ridículo! Você sabe que sua mãe nasceu nessa cidadezinha. Sabe que vocês iam para lá quase todo fim de semana. Eu já fui várias vezes com os meus pais. Sabe que seu pai nunca quis vender esse sítio por sua causa? Tem uma parte valiosa da sua história lá.

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