1. O abandono pode (não) ser tão doloroso

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Brasília 1998

O cheiro impregnado de suor e mofo no quarto não incomodavam a garotinha, pela primeira vez depois de seus poucos 6 anos de vida, sua mãe havia deixado o álcool de lado. A criança ainda não havia escutado nenhum dos berros de Kiara, nenhuma reclamação. Suas narinas ainda ardiam com o álcool que havia sido derramado sem querer pelo Harry, o gato preto de sua mãe, mas a mulher milagrosamente apenas sorriu. Mesmo muito criança, Giovana se deu conta de que alguma coisa estava mal.

Giovana era uma menina que não falava muito, sentia medo de sua mãe e de seus amigos. Todos os dias Kiara levava um homem diferente para sua casa, e enquanto eles bebiam e gritavam coisas desconexas no quarto, a pequena se escondia dentro de seu guarda-roupa.

— Eu sei que está aí Alícia! — Kiara grunhiu seu segundo nome, e a criança pulou assustada.

A menina andou até o velho sofá, onde Kiara pintava suas enormes unhas com um pink fluorescente. A mulher sorriu e lhe deu um tapa no rosto, o estalo foi tão forte que Giovana caiu sentada no piso sujo da sala.

— Nunca mais se esconda! Manuel achou seu esconderijo pirralha. — Kiara se levantou e olhou para os pés descalços da menina. — Não chore, criança nojenta! Esse tapinha não doeu!

Giovana chorava em silêncio, sabia que se fizesse alarde, Kiara a puniria novamente. Sua mãe não tinha muita paciência, cada vez que a via chorar por algo, estava sempre pronta para lhe dar pauladas com o cabo de vassoura, a menina ficava por dias com suas pernas doloridas e roxas.

Seus olhos estavam tão embaçados que ela apenas percebeu que sua mãe havia se levantado, quando a mulher a pegou no colo sem nenhum cuidado. Rapidamente Giovana limpou suas lágrimas e cessou o choro, suas mãos começaram a tremer quando Kiara começou a rasgar suas roupas sem se importar se a machucava.

— Quero você bem limpa! — a mulher a jogou dentro de uma pequena bacia cheia de água. — Saia apenas quando estiver bem branca, se eu ver alguma sujeira você vai morrer Alícia!

Giovana se esfregava como nunca havia se esfregado antes, a escova raspava sua pele clara deixando vários rastros de arranhões, isso era um bom sinal, a pequena pensou. Quanto mais vermelha sua pele ficava, mais limpa se encontraria.

— Pronto! Não pense que temos água para seus banhos de princesa. — Kiara apareceu no banheiro com um cigarro na boca. Giovana saiu da bacia, nua e tremendo de frio. Ela esperou pelo aviso de sua mãe.

— Você está esperando o que pirralha? Anda logo! Vista-se.

A menina estranhou ao ver um vestido em cima de sua cama, ele era rosa, rendado e novo. Depois que conseguiu com muito custo se vestir, percebeu que ele havia ficado muito grande, a saia do vestido se arrastava pelo chão. Logo depois, sua mãe apareceu trazendo consigo uma nuvem cinza de fumaça. Quando menos Giovana esperou, Kiara lhe jogou um par de sandálias aos seus pés.

— Estes sapatos devem lhe servir, ande calce-os! — os pequenos saltinhos couberam perfeitamente nos pés da criança. — Não é que aquele desgraçado sabe seu número! — ela gargalhou. — Ande! Sente-se aqui em minha frente, tentarei arrumar esses cabelos.

— Teu pai não pode ver a sua querida filha com esses cabelos horrorosos e bagunçados. — falou puxando os fios claros da menina. — Fica quieta!

Estados Unidos 1998

Após o último show da banda, a correria contra o tempo fora dura. Eram 2 horas da manhã quando a última canção foi finalizada, os meninos da banda entraram na van antes mesmo de serem atacados pelos fãs mais afobados, agora estavam todos super cansados e cada um em sua cama, indo direto para o Brasil. Micael era o guitarrista, antes de entrar no avião já estava capotado em cima dos ombros de Rodrigo, tecladista e backing vocal. Júlio era o mais velho do grupo, com seus 32 anos era o empresário e compositor da banda. E sobrava Augusto o vocalista, o sonho de qualquer fã dos Heroes, seus cabelos lisos e seus olhos negros deixavam qualquer mulher louca e apaixonada. Era o garanhão do grupo, e sempre conseguia o que queria. Depois dos shows, seu quarto era porta de entrada para mulheres, ele escolhia a dedo enquanto as hipnotizava com sua voz. Transavam até o sol raiar e depois nunca mais se viam. Foi em uma dessas brincadeiras que acabou encontrando uma bela de uma confusão para sua vida, se levou pela beleza de Kiara e acabou a engravidando, quando ainda era um cantor pouco conhecido de algum bar de esquina.

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