Prólogo p.3

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Eu me inclinei para a frente enquanto meu avô pegava da caixa quatro retratos amassados e bastante amarelados.
O primeiro parecia com um conjunto de roupas flutuante, sem ninguém dentro. Ou isso, ou a pessoa não tinha cabeça.
- Claro que ele tem cabeça! - exclamou meu avô, com um sorriso. - Só não dá pra ver.
- Por quê? Ele é invisível?
- Mas olha como você é inteligente! - Ele ergueu as sobrancelhas como se eu o tivesse surpreendido com minha capacidade de dedução. - Esse era Millard. Garoto engraçado. Às vezes ele chegava para mim e dizia: "Oi, Abe. Eu sei o que você fez hoje" e começava a dizer aonde eu tinha ido, o que eu tinha comido, se tinha tirado meleca quando ninguém estava olhando. Às vezes ele tirava toda a roupa para ninguém o ver e seguia a gente, sem fazer barulho nenhum. Ficava só observando! - Vovô balançou a cabeça.
- Tanta coisa melhor pra fazer, não acha?
Meu avô me entregou outra foto e esperou enquanto eu a observava por alguns instantes.
- E então? O que está vendo aí?
- Uma menina.
- E...?
- Uma menina com uma coroa.
- E quanto aos pés dela? - perguntou ele, batendo com o dedo na parte inferior do retrato.
Aproximei a foto do rosto e vi: os pés dela não tocavam o chão. Mas ela não estava pulando... Parecia flutuar.
Fiquei boquiaberto.
- Ela está voando!
- Quase isso. Está levitando. O problema era que ela não conseguia se controlar muito bem, então às vezes tínhamos que amarrar uma corda na cintura desse menina pra ela não sair voando!
Meus olhos estavam grudados no assustador rosto de boneca da menina.
- Isso é verdade?
- Claro que é - respondeu meu avô de um jeito meio brusco. Ele tomou a foto da minha mão e me deu uma terceira, que mostrava um garoto magricela levantando um pedregulho. - Victor e a irmã não eram lá muito inteligentes, mas, rapaz, como eram fortes!
- Ele não parece forte...- Comentei, reparando nos braços magros do garoto.
- Pois acredite: ele era. Teve uma vez que disputamos uma queda de braços e ele quase arrancou minha mão!
No entanto, a fotografia mais estranha era a última, que mostrava uma cabeça com um segundo rosto pintado na parte de trás.
- Ele tinha duas bocas, está vendo? Uma na frente e outra atrás - explicou meu avô, enquanto eu observava a foto com atenção. - Por isso ficou tão grande e gordo!
- Mas é de mentira. O rosto da foto é pintado.
- A pintura é de mentira, claro - respondeu vovô. - Era para um espetáculo de circo que ele fazia. Mas estou dizendo, ele tinha duas bocas! Não acredita em mim?
Fiquei pensando enquanto olhava para as imagens e para meu avô. O rosto dele transmitia tanta sinceridade, tanta franqueza! Que motivos ele teria para mentir?
- Eu acredito - respondi.
E realmente acreditei, pelo menos por mais alguns anos. Em grande parte, eu nutria essa crença mais por vontade própria, do mesmo jeito que as crianças da minha idade queriam acreditar no Papai Noel. Tendemos a nos apegar aos contos de fadas até a fantasia cobrar um preço alto demais - o que, para mim, aconteceu no segundo ano, no dia em que Robbie Jensen arriou minha calça na frente de uma mesa cheia de garotas e disse que eu acreditava em fadas.
Acho que eu tive o que mereci por repetir para os meus colegas na escola o que eu ouvia em casa. Durante aqueles segundos humilhantes, pressenti que o apelido Fadinha me acompanharia por alguns anos, e, embora eu não tivesse razão para tanto, aquilo despertou um ressentimento em mim para com meu avô.
Ele foi me buscar aquela tarde na escola, como fazia sempre que meus pais ficavam presos no trabalho. Entrei no carro velho que ele dirigia e anunciei que não acreditava mais nas invenções dele.
- Que invenções? - perguntou meu avô,me encarando por cima da lente dos óculos.
- Você sabe. Aquelas histórias. Sobre crianças e monstros.
Ele parecia não entender.
- E quem foi que falou que são invenções?
Respondi que histórias inventadas e contos de fadas eram a mesma coisa, que contos de fadas eram bobagens que se contam para criancinhas bobas que ainda fazem xixi na cama e que aquelas fotos que ele havia me mostrado eram obviamente falsas. Depois disso tudo pensei que vovô fosse ficar irritado ou discutir, mas não.
- Tudo bem - disse ele, e então deu partida no carro, pisando fundo no acelerador.
Demos o fora dali. Fim de papo.
Vovô já devia imaginar que aquilo aconteceria mais cedo ou mais tarde. Em algum momento eu não teria mais idade para embaraçar naquelas fantasias.
Mas ele
Deixou o assunto de lado tão depressa que tive a impressão de que estava mentindo. Eu não conseguia entender por que ele tinha inventado aquilo tudo, me levado a crer que pessoas e vidas extraordinárias eram possíveis, quando não eram.
Somente anos depois, meu pai me explicou que, quando ele próprio era criança, ouvira as mesmas histórias de vovô Portman, e que não eram propriamente falsas ou inventadas, mas versões exageradas dos eventos reais - porque a infância de meu avô, nada tivera de contos de fadas. Tinha sido uma história de terror.
Meu avô foi o único da família a conseguir fugir da Polônia antes que eclodisse a Segunda Grande Guerra. Ele tinha doze anos, o caçula, quando os pais o enviaram à Grã-Bretanha com apenas uma mala e a roupa, para viver com estranhos.
Seria uma viagem sem volta. Ele nunca mais viu os pais, nem os irmãos, primos e tios. Quando completou dezesseis anos todos já tinham sido mortos, assassinados por monte os dos quais ele havia escapado por um triz. Mas esses monstros não eram as criaturas com tentáculos e pele em putrefação  (do tipo que uma criança de sete anos consegue compreender); eram monstros com rosto humano, em uniformes impecáveis, que marchavam em fileiras cerradas e pareciam pessoas perfeitamente comuns - tão comuns que sua verdadeira natureza só foi descoberta quando era tarde demais.
Assim como os monstros, a história  ilha encantada tbm era uma verdade disfarçada. Comparado aos horrores que assolavam a Europa continental, o lar para crianças que escolheu meu avô devia parecer um paraíso. Por isso, era assim que ele o descrevia: um porto seguro, um lugar em que os verões eram intermináveis, habitados por anjos da guarda e por crianças mágicas que, é claro, não eram de fato capazes de voar, ficar invisíveis ou levantar pedregulhos com uma mão só. A peculiaridade que as tornavam alvos dos monstros era o simples fato de serem judias. Eram órfãs de guerra, levadas àquela ilha distante por uma maré de sangue. Elas não eram extraordinárias porque tinham poderes; o fato de terem escapado dos guetos e das câmaras de gás  por já era um milagre por si só.
Depois de entender isso, parei de pedir ao meu avô que me contasse aquelas histórias. E acho que, embora não admitisse, ele se sentiu aliviado. Um ar de mistério passou a cercar os detalhes de sua infância, e eu não toquei mais no assunto. Ele viverá um inferno e tinha o direito de guardar seus segredos. Fiquei envergonhado por ter passado tanto tempo invejando sua vida, levando-se em conta o preço que ele pagara por aquelas "aventuras", e tentei ser grato por minha existência segura e nada extraordinária que eu não tinha feito nada para merecer.
Até que, tempos depois, quando eu tinha quinze anos, algo terrível aconteceu e realmente extraordinário aconteceu, e foi então que tido se dividiu em Antes e Depois.

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Me desculpem qualquer erro

O orfanato da Srt. Peregrine para Crianças PeculiaresWhere stories live. Discover now