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''Hey, Feeby. Obrigada por me pegar aqui no aeroporto. Eu pagaria 10 euros a mais só porque os taxistas daqui sempre acham que sou gringa ou alguma coisa do tipo.''

Agradeço enquanto jogo minhas malas nos bancos traseiros do pequeno Palio Fire da minha colega de quarto temporária do Instituto.

''Eu não tinha nada para fazer além de 50 trabalhos acumulados jogados numa pilha que formei na sua cama vazia.''

Ela ri maliciosamente enquanto liga o carro e eu me espremo dentro do meu casaco de lã. Maldita seja a Alemanha com seu frio ridículo. Berlim deveria ser apenas mais uma cidade quente como, sei lá... Tirat Zvi em Israel.

''Você fez?''

''O que eu fiz ou deveria ter feito que não estou lembrando?''

''Os trabalhos do professor Peek pra amanhã.''

''Claro e ainda fiz hoje mesmo aquele do meu orientador. Acredita que quase bati o meu recorde de novo?''

Eu realmente aprecio minha roommate pelo simples fato dela saber ignorar o que as pessoas me enchem o saco. Tudo sobre a minha personalidade e minha condição um pouco inusitada – apesar de estarmos quase em 2020 – são motivo para curiosidade, e por mim tudo bem se for saudável e curto, porém as pessoas já ultrapassaram as barreiras da "normalidade" e é por isso que eu tenho mudanças de colegas de quarto anualmente. É bizarro. Por exemplo, teve o que eu chamo de Caso Fleckey. Esse garoto americano que fez de tudo pra eu ser o objeto de estudo de pesquisa dele, inclusive se mudar para o meu quarto para me estudar contra a minha vontade. Após resolver essa situação, o campus inteiro do Instituto de neurologia começou a me ver como um robô a ser testado. Então o combinado foi que todo ano eles enviariam novos colegas para mim, pois a pessoa aleatória poderia me odiar pelos meus problemas ou eu poderia sofrer algum tipo de abuso de novo. Vantagem que eu não queria precisar ter.

''Ele vai saber e ainda vai contar piadas sobre sua memória eidética pra turma novamente. Ele não acredita que você tenha algo do tipo, sempre fala pra todos que você é apenas uma ilusionista e odeia que você haja com tanto deboche o tempo todo."

''Que seja, eu sou maravilhosa. Ele só me critica porque se importa comigo lá no fundo daquele coração negro.''

Tento achar alguns chicletes ou qualquer tipo de bobeira comestível dentro do carro, porém falho miseravelmente. Quem não tem doces extras? Nunca se sabe quando terá um emergência açucarada. O caminho dura cerca de 23 minutos até o campus que já está coberto de neve. Desço do carro enquanto observo os calouros chegarem parecendo cachorrinhos inocentes num lugar que causa distúrbios mentais e insônia. Eu sei que critico bastante, porém eu não seria nada sem esse lugar apesar do meu sarcasmo nem um pouco velado. Sério. Foi a melhor coisa, apesar de ter sido um pouco precipitada, devo confessar. Feeby Kasvlosk me ajuda com as tralhas sem reclamar ao descermos do carro. Ela é uma boa garota, seu único defeito é que ela vai ficar só até janeiro.

Me sinto ansiosa por vários motivos assim que chegamos ao estacionamento do Instituto. Haviam feito reformas nos quartos do meu campus (por serem muito antigos e causarem mais problemas do que deveriam) e queria ver os móveis que encomendei na Amazon alguns dias antes incorporando todo o ambiente. Deve ter ficado incrível. Desço correndo do carro me empanturrando de objetos desnecessários que só entendemos que são quando chegamos de viagem, mas graças aos deuses Fee estava aqui pra me ajudar apesar de ser insuportável com ela durante todo o caminho. Ela odeia e adora o fato de eu ser tão questionadora. Sentirei saudades.

Começo a pensar em algoritmos assim que passamos pela porta. É a minha coisa, sabe? É tipo algo esquisito que fazemos e que a maioria das pessoas não sabem sobre nós, talvez porque você seja apenas reservado ou apenas se acha louco e aceitou o seu destino. Mas essa, especificamente dizendo, é a minha coisa e foi ela que me proporcionou e ainda proporciona várias bolsas de estudo e interesse acadêmico de vários lugares deste planeta. No entanto, nem tudo poderia ser perfeito na vida de alguém e eu sofro de transtorno bipolar e enxaqueca crônica. Motivo? Alguma coisa a ver com com pensamentos rápidos – mais do que o normal.

Somos paradas por 5 garotas um pouco mais novas que nós assim que chegamos ao hall. Sofia, Veron, Blazer, Gyna e Clarice. Blazer é a única suportável.

''Vão sair da frente ou vou ter que pedir para oferecerem ajuda?''

''Delicada como um coice de mula. Senti sua falta". Disse Blazer me dando um leve abraço e pegando minha bagagem de mão e alguns livros soltos para que eu pudesse retribuir.

''Você foi nomeada como a jovem com mais bolsas de estudo de Berlim oferecidas em uma década! Sua foto estava em todos os jornais essa manhã.''

"Oi pra você também, Topsand."

Sofia é minha informante, mas foi algo sem consentimento. Ela simplesmente aparece do nada e me diz essas coisas – que eu não me importo na maioria das vezes. Pra ela é como se fosse ganhar um prêmio Nobel e sempre foi uma grande fã das minhas pesquisas apesar de eu nunca estar satisfeita com meus projetos acadêmicos.

''Achei que Elizabeth Prior fosse a pessoa com mais bolsas pendentes nessa capital''

''Brown University e Cambridge mandaram ontem pra você. Eu não acredito que você não olhou seu e-mail!''

''Olho nos correios depois. Preciso estar no Instituto de Pesquisas Matemáticas de Oberwolfach em trinta minutos e 39 segundos ou o conselho vai me matar.'' - Digo enquanto sigo para o meu quarto e apenas ouço cochiços sobre mim enquanto passo pelo salão ao lado de Kasvlosk.

Minhas mãos começam a tremer assim que abro a porta do quarto e percebo que: primeiro, está tudo arrumado, diferentemente do que minha parceira disse. Segundo, o aquecedor quebrou de novo por causa do meu gato e iremos morrer congeladas nesse cubículo.

Prestando mais atenção agora, percebo que o quarto está pintado de azul petróleo e possui duas paredes brancas - preservando as cores da bandeira e do logotipo do local. Os móveis são todos brancos e alguns de madeira que não foram pintados e nunca serão, pois esta é justamente a beleza disso tudo. É cru. Alguns nichos pregados nas paredes contribuem para separar alguns livros da mesma cor em cada um e outros de vidros acompanham plantas, afinal, elas são amigas. Poderia ter mais detalhes, mas a diretoria nunca ia permitir, a não ser que você seja o filho do Presidente, daí talvez haja alguma exceção.

Colocamos as coisas na mesinha de madeira branca recentemente polida e fechamos a janela para que o frio diminua um pouco mais, nos encorajando a vestir mais uma camada de roupa, um moletom azul escuro com o logo da universidade e meias mais grossas.

Sento na cama enquanto Fee prepara chá quente e alguns pãezinhos recentemente colocados no forno feitos por ela. Meus pés latejam com a dor do frio como reclamação de uma mudança climática repentina e resolvo deitar um pouco. Pego o meu celular do bolso do jeans e envio uma mensagem para o Conselho.

"Minha enxaqueca não me permitirá produzir nada por hoje. Peço desculpas sinceras. Recompenso as horas curriculares amanhã. Obrigada."

Fee retorna se sentando ao meu lado na cama e me oferecendo uma caneca de chá, comprimidos e um pão italiano com orégano e molho vegano. Agradeço com um sorriso e depois de entender, afaga minha perna com a mão esquerda enquanto beberica seu próprio líquido quente.

"Conheceu alguém especial?"

Faço careta após engolir os comprimidos e nego com a cabeça.

"Nei. Só um cara normal que me deu um orgasmo. Mas acredito que isso seja mais do que a obrigação dele, apesar de ter feito quase todo o trabalho. Hmmm, Jacob... Jacob Morton veio aqui?"

Jacob é um estudante da Stockholm que cursa Patologia. Ele poderia ser um babaca na minha lista de Homens Inúteis Deste Instituto, mas ele acabou sendo um novo motivo para passar pela área dos especialistas. Ele é um caso interessante. Um jovem-comum-porém-peculiar, com seu cabelo estilo modelo internacional, lábios um pouco mais carnudos que os encontrados por aqui na Alemanha, nariz perfeito e olhos pequenos. Também tem algumas sardas, vive de casaco longo preto – quando não usa sempre o mesmo uniforme típico branco – e possui um maxilar muito bonito. Seria uma pena se ele não se importasse com a minha presença, mesmo sei um pouco intrometido quanto a minha saúde e a mesma bobeira de sempre. Uma vez acabamos nos beijando no meu aniversário, mas foi coisa de bêbado e ele não se lembra - perguntei pra ele certo dia. Agora só vou lá pra pegar alguma coisa emprestada de um amigo que temos em comum, o Eliott.

"Passou por aqui pra entregar seu livro sobre algum lance nuclear que ele tava interessado."

"Entendi."

Apesar de me causar interesse e incômodo, não acredito que ele tenha ou seja o suficiente para que eu me force a dizer que beijaria ele de novo qualquer dia desses no laboratório de física. Fecho os olhos pensando nas mãos macias de Morton no meu pescoço e acabo dormindo, sonhando não com ele, mas com vários sistemas de Tableaux que vieram à tona depois de 15 anos sem ler uma palavra sobre o assunto, mas acabei aprendendo na medida que dormia.

Acordo com a respiração lenta e dolorosa, então bebo toda a água da minha garrafa e pego um cachecol da mochila que ainda estava na minha cama. Enrolo o tecido felpudo no pescoço e decido sair para buscar minhas encomendas no correio. Já é 19:55 quando seleciono quais jogo fora e quais devo ler por serem realmente importantes, começo a procurar as cartas das bolsas para pesquisa acadêmica, porém acabo encontrando uma carta sem remetente, coisa que nem sabia ser possível de se enviar. Quem será?

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⏰ Última atualização: Dec 28, 2017 ⏰

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