PRIMEIRO ATO - Capítulo 1

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Mais um dia comum surgia, como os 15 anos da vida da jovem Guilda sempre foram. Acordava ao raiar do sol e ajudava seu pai com os afazeres da pequena fazenda que mantinham no interior do vilarejo de Sakit. Com os impostos da coroa crescendo desproporcionalmente dia e noite, a necessidade de sua ajuda no trabalho braçal aumentava, mesmo que o velho senhor John se opusesse a ter a bela filha ao seu lado trabalhando sob o sol quente do verão.

- Guilda, vá para casa. Sua mãe precisa de ajuda por lá. – repetia pela quarta ou quinta vez, mas a garota permanecia fingindo não ouvir enquanto batia insistentemente com a enxada no solo seco e pobre. – Menina, você é uma dama. Como se atreve a estar no sol? Ficará com a pele manchada e não poderá casar-se com um duque, ou talvez um conde.

- Não quero me casar com ninguém poderoso. – riu secando a testa suada com seu avental. – Homens da corte são fúteis, infiéis e desprezíveis. – revirava os olhos ao falar sobre quem tanto desprezada. – Sabe, senhor John Krism, ouvi dizer que esses poderosos homens pagam por mulheres, enquanto tem suas esposas em mansões. Eles não as valorizam. É isso que o senhor sonha para a sua filha, papai?

- Eu já lhe disse que é muito geniosa? – riu o senhor de idade avançada, sentando a sombra de uma árvore.

- Hoje ainda não. – acompanhou-o até a sombra, a garota sorridente.

- Eu só quero o seu melhor, Guilda. – suspirou John, após uma pausa. – Estamos passando por momentos difíceis e uma moça tão bonita e inteligente quanto você não deveria estar em uma situação dessas.

- O que eu deveria estar fazendo, pai? – perguntou pegando um graveto para riscar o chão. – Deveria estar escolhendo vestidos caros e fingindo ser amiga da rainha por conveniência de um marido que não me ama, só me usa para mostrar que pode pagar o dote de uma bela jovem camponesa?

- Você faz isso parecer ruim. – riu, dando-lhe um leve peteleco na testa.

- E não é? – levantou-se limpando o velho vestido de algodão cru feito por sua mãe após a última colheita. – Eu não almejo essa vida. Quero andar por minhas próprias pernas. – pausou observando a fazenda morta a sua volta e lamentando não poder mudar a situação em que viviam. – Sei que posso. Até mesmo aprendi a ler sozinha, não há nada que eu não possa. – sorriu encorajando o velho.

Ao longe pode-se ouvir trotes rápidos de cavalos e ver a infantaria real, com seus trajes verdes e armaduras de um metal lustroso, aproximando-se da residência da família Krism. John e Guilda entreolharam-se e correram a direção da casa, já tendo certeza sobre o motivo da visita real: novos impostos.

Guilda e seu pai correram de volta a residência, encontrando-a revirada, com soldados espancando a matriarca que chorava desesperada. John, empunhou a espada que carregava presa em suas calças e Guilda, tremendo, segurou seu pequeno punhal, tentando parecer ameaçadora.

- O que fazem em minha casa? – berrou o patriarca da família Krism.

- Não pagaram os impostos, viemos atrás de algo valioso. – levantou-se um dos soldados que bebia vinho estirado sobre uma cadeira, assistindo malharem a velha senhora. – Aparentemente são pobres demais para manter algo valioso aqui, além dessa bela moça. – sorriu malicioso.

- Não ouse olha-la, seu porco. – Rose, mãe de Guilda, gemeu irritada e recebeu um chute em resposta a seu desacato.

John empurrou levemente sua filha para detrás de si, buscando protege-la, e permaneceu empunhando a espada, prestando atenção em cada movimento dos supostos homens da lei. Mesmo que lhe doesse ver a mulher de sua vida sendo torturada, naquele momento importava prezar a vida de Guilda, a única e maior riqueza dos dois.

- Peguem a garota. – o soldado falou depois de uma pausa dramática. – Creio que nosso rei ficará contente com o presente. – riu ao ouvir os berros de protesto da família. – Em seguida, matem os velhos e destruam a casa. – saiu sem se importar com a chacina que aconteceria ali.

Guilda tentou impedir, mas viu um dos guardas perfurar o coração de seu pai com uma espada afiada enquanto outro cortava a garganta de sua mãe. Chegou até mesmo a golpeá-los com seu punhal, porém foi parada com um tapa extremamente forte em seu rosto, ao bater a cabeça no chão não pode mais lutar e a consciência se fez ausente. A garota desmaiou enquanto sentia o líquido viscoso escorrer em seus cabelos, pelo corte da queda.

Ao acordar, já não estava mais em sua casa, não sabia onde estava. Era escuro e gélido, a umidade era quase que palpável e os ruídos feitos por ratos eram sua única companhia naquela escuridão. Tentava focar em algo ao seu redor, porém a única coisa que viu foi uma pequena vasilha com o que parecia ser vomito e com certeza cheirava a isso.

- A moça acordou! – alguém gritou e um feixe de luz a cegou por instantes. – Não vai comer? – um velho homem do outro lado das grades laterais do que agora imaginava ser uma cadeia, segurando uma vela e com a aparência sofrida perguntou.

- Ann... e-eu não sei. – respondeu confusa, tentando visualizar qualquer familiaridade ao seu redor. – Pode ficar. – empurrou o prato em direção as grades e o idoso saltou sobre o prato, faminto.

- Algum problema? Bateram em você? – perguntou com a boca cheia, sem se importar com modos, talvez nem ao menos os tivesse, era provável ser um pedinte, um vagante apanhado pela infantaria. – Me conte sua história bela moça. Porque está aqui?

Ao ouvir os questionamentos do velho, tentou alinhar seus pensamentos e buscar suas últimas memórias, foi quando o banho de sangue foi recordado. A dor da perda a assolou de tal forma que sequer pode responder ao senhor, apenas chorou em silêncio, mesmo que não gostasse de demonstrar sentimentos, nem aos pais. Hoje pensava que se ao menos uma vez tivesse demonstrado maior carinho ou feito o que seu pai sempre pediu, casar-se com algum dos ricos latifundiários que a cortejavam, esse não seria o destino de sua família. Se ao menos tivesse coragem o suficiente para defende-los, não os teria perdido, nem mesmo estaria em um calabouço, a mercê de qualquer coisa.

O velho senhor permanecia devorando a tigela de vômito quando ouviram o ranger grave de uma porta se abrir e o mesmo soldado responsável pela morte de sua família entrava no calabouço.

- Ora ora ora... se não é o bonequinha de porcelana. – riu zombeteiro. – Parece que o rei terá seu presente logo em breve, não é mesmo. – passou sua espada empunhada pelas grades, causando um ruído irritante.

- Eu vou matar você – Guilda sussurrou com ódio, enquanto olhava para o homem, imaginando mil formas de cometer tal ato, a fim de vingar sua família.

- O que você disse, meretriz nojenta? – berrou com raiva.

- Ela pediu por mais comida, senhor. – o velho, que até então se mantinha calado e encolhido na presença do guarda, sussurrou em uma tentava de salvar a menina. – Está muito fraca.

- Velho decrépito. – cuspiu em direção do avelhantado senhor. – Tirem essa escória daqui. – riu falando com os demais guardas do recinto. – O povo está precisando de um enforcamento para saber o seu lugar.

Em resposta, a infantaria destrancou as grades da cela e arrancou o velho, que gritava implorando por piedade, de lá, dando-lhe socos e chutes no caminho. Guilda assistiu àquilo aterrorizada e encolheu-se contra a parede traseira de sua cela afim de se proteger, ao menos um pouco, de tamanha crueldade.

- Agora que estamos a sós... – sorriu o suposto chefe da guarda com seus dentes amarelados e podres. – Devo provar da meretriz antes de levá-la a Majestade para assegurar-me de seus dotes? – ameaçou abrir a cela, sorrindo da forma como Guilda o olhava assustada e enojada.

- Não se aproxime de mim, seu porco. – arriscou falar, levantando-se, na tentativa de parecer ameaçadora.

Por um breve instante, o homem ali presente pareceu terrivelmente irritado, porém logo ele ria compulsivamente, como se Guilda tivesse contado a melhor das piadas.

- Levem-na para a sala das concubinas, elas vão lavá-la e prepará-la ao rei. – falou para alguns dos soldados ali presentes. – Você vai conhecer o porco da realeza muito em breve, bonequinha de porcelana. – riu escarnico e saiu do ambiente, enquanto os guardas abriam a cela da garota e arrastavam-na para outro lugar desconhecido, mudando o curso da história daquela jovem e bela garota, agora órfã e a mercê dos caprichos de um rei conhecido por ser odioso.

Trilogia Sangue Azul - Livro 1 - MargaridaOnde histórias criam vida. Descubra agora