Impermeável

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Eu não sou impermeável. 

A minha pele é rendada, feita de linhas que se trançam fracamente. Todo tipo de coisas passam por entre meus poros: as emoções, as cores, as dores dos outros. Tudo atravessa até chegar à minha carne. As energias mais sutis e as mais explícitas me tomam como uma avalanche. Eu rodopio, afogando nas ondas e nos destroços que vêm dos outros, que vêm do mundo, que vêm das histórias tristes, dos dissabores e desamores de todos. 

Eu me afogo em milhares de palavras e choros, e fome, e angústia, dessa terra toda.

Não tenho mais fronteiras. A minha pele foi talhada. 

Não tenho filtro, não tenho escolha. Tudo o que acontece em volta invade meu corpo, esmaga meu coração com mãos de ferro, confunde minha mente e sequestra minha alma. Eu estou cada vez mais distante de mim mesma, cada vez mais em pedaços, em fragmentos, à deriva na imensidão.

Eu queria voar, mas cortaram minhas asas, cerraram meus ossos, taparam minha boca e violentaram a minha identidade. Eu não sei mais quem eu sou. Eu não sei nem por onde começaria, se tentasse emendar os cacos que fizeram de mim. Não se monta um quebra-cabeças sem uma imagem de referência. 

Eu não tenho imagem refletida no espelho. Só sei o que fui e o que gostaria de ser, mas milhas e milhas me separam do passado e do futuro. 

Hoje eu não sou nada. Eu não tenho reflexo no espelho pra me basear, eu não tenho norte na minha bússola interior. Eu estou vazia, porque fui esvaziada até a última gota. Eu sou um corpo morto e mecânico, a bel-prazer de quem vier. Eu não tenho nenhum controle. Eu estou de braços abertos, de costas para as profundezas do mar, esperando que a salvação chegue, que uma versão mais corajosa e sadia de mim mesma chegue em um barco e me resgate do afogamento, esperando que ela me cure da insanidade, que ela me ame como jamais fui capaz de me amar.

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