Foi uma barra enfrentar a minha família e dizer que eu queria estudar gastronomia. Na época em que eu prestei vestibular ainda não estava na moda essa coisa de ser chef de cozinha. Meus pais, que sempre investiram alto na minha educação, queriam que eu seguisse a carreira deles. Os dois, advogados muito bem-sucedidos, acreditavam que o único filho que tinham daria continuidade ao escritório muito chique, localizado no Leblon, área nobre do Rio de Janeiro. O problema é que eu nunca, em momento algum, pensei em seguir os passos deles. Desde muito cedo a cozinha me chamava. Eu passava as minhas tardes após a escola, junto com Dalva, a cozinheira que trabalhava para a nossa família, inventando receitas novas, que iam de um macarrão muito simples a complexas tortas de coisas exóticas, tipo carne de ganso ou javali. Não me importava se era doce ou salgado, caro ou barato, fácil ou difícil. A única coisa que eu realmente me atentava era se o sabor explodia na boca e trazia uma sensação indescritível de prazer.
E assim, Dalva se tornou a minha melhor amiga. Ela era uma senhora que na minha adolescência já tinha a cabeça toda branca e se movia com desenvoltura pela nossa cozinha, entre fogão, geladeira e panelas, sendo aquilo lindo demais de se enxergar. E não por acaso foi para ela que eu contei que uma guerra se travaria na minha casa pela escolha do meu curso superior. Eu não poderia estar mais certo.
Tentei ser o mais bacana possível na hora de transmitir a informação que eu tanto temia. Passei quase uma semana orquestrando como faria isso. Dalva tentava de todas as formas me convencer de que eu deveria mesmo me formar no curso que eles escolheram para mim e que cozinhar era apenas um hobby. Eu ria da simplicidade daquela mulher, e acreditava no meu íntimo que pessoas tão cultas como os meus pais compreenderiam o meu sonho e talento. Os dois eram, sim, apreciadores de comidas muito refinadas, gastavam algumas pequenas fortunas em restaurantes estrelados da elite carioca. Certamente compreenderiam que eu poderia fazer uma carreira sólida e estável como um cozinheiro de renome. Eu nunca tive preguiça de estudar e não seria na hora crucial de abraçar uma profissão e carregar para o resto da vida que eu me tornaria uma pessoa relaxada comigo mesmo.
A decisão de qual o meu curso superior foi muito fácil. O difícil foi decidir como eu efetivamente contaria aos meus pais. No lugar de um filho advogado eles teriam um filho cozinheiro. Resolvi que o melhor momento de contar essa decisão a eles, seria em uma hora em que a comida fosse a estrela da noite!
Reuni papai e mamãe na hora do jantar, e todos os pratos haviam sido preparados por mim, com muito capricho. Uma salada de endívias na entrada sendo que a receita eu havia tirado do caderno de receitas deixado pela minha avó materna, um risoto de limão siciliano com salmão defumado de prato principal inspirado no restaurante preferido de minha mãe e uma torta de três chocolates como sobremesa, o prato que fazia meu pai suspirar de amores. Arrumei a mesa com todo carinho, peguei as taças de cristal e o faqueiro de prata para deixar bem claro que a ocasião era séria. Eu ainda não entendia nada de vinhos naquela época, pois eles não me deixaram beber antes dos dezoito anos, e por isso pedi auxílio de Dalva nesse quesito, que escolheu um chardonnay da adega do meu pai, além de fazer um delicioso suco de morango com hortelã para mim.
Fiquei dois dias preparando aquela refeição! Tudo teria que dar muito certo. Era inadmissível que algo saísse cru, queimado ou fora do ponto. Eu tinha que deixar muito clara a minha maestria com as panelas, de forma que eles soubessem que eu não poderia escolher outro curso superior.
Mais ou menos uma hora antes do horário habitual que jantávamos eu já estava terminando os preparativos, com panelas em ebulição em cima do fogão, o forno chiando de tão quente, e a geladeira docilmente abrigando a minha torta feita com tanto afinco. Mamãe chegou toda bonita, me deu um beijo na testa e sorriu.
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Um sonho de confeiteiro - DEGUSTAÇÃO
ChickLitUm talentoso confeiteiro, completamente focado em sua carreira profissional e sem tempo para mulheres. Uma jornalista obstinada, que deixa a sua marca por onde passa. Daniel acreditava que nunca mais conseguiria amar uma mulher como já havia amado a...