Os vasos sanguíneos que tomavam todo o branco dos olhos, somado com a íris acinzentada, meio opaca, dava-lhe a impressão de ter sido atacado por alguma terrível doença, daquelas infecciosas que em poucos dias lhe rouba o dom da visão, além disso, sua perna curta e seu braço atrofiado deixava-o quase inumado, diabólico. Todos o chamavam de "O monstro da rua Straus", mas seu nome de batismo era Nicodemus Motta Dinis, nascido de pais nordestinos, tornara-se órfão logo aos oito anos, sendo obrigado a morar com sua tia da alta sociedade na cidade de São Paulo, na dita rua Straus. Lá cresceu, estudou, trabalhou, tornou-se homem e, por fim - quando a tuberculose acabou ceifando a vida de sua tia - também sofreu. Tornou- se o "Monstro" mais popular da cidade.
"Ele é o Filho do diabo" diziam uns, quando o viam encostado na janela de sua casa velha, observando-os curioso, com seus sinistros olhos opacos. Outros apenas o ignoravam, como se ele fosse um pedinte ou, como um infeliz que teve o azar de vir ao mundo com aquela forma grotesca. Mas sua verdadeira fama se encontrava mesmo entre a criançada, todas o conheciam, inventavam histórias a seu respeito, criavam uma aura mítica, tornando-o quase um ser fantástico.
Uma dessas histórias, talvez a mais incrível, aconteceu não faz muito tempo, apenas há alguns anos, numa linda tarde do mês de julho.
Era o período das férias, a temporada de pipas havia acabado de começar, inúmeras arraias coloridas cortavam o céu da cidade, com suas espalhafatosas danças em pleno ar, um espetáculo, mas havia uma pipa que se destacava entre todas as outras: amarela, feita com papel de seda, de rabiola multicolor, que voava solitária numa altura magnífica, parada sobre o vasto céu azul.
—Sai daqui Gustavo, se não eu vou te cortar! —gritava Pedro, o dono da magnífica pipa, ao amigo que se aproximava perigosamente.
—Vai nada, eu que vou capturar a sua! Ela vai ser minha! —o amigo retorquia.
De repente, uma luta começava nos ares, uma pipa tentando capturar a outra, com giros e zigue-zagues, digladiavam-se em meio as nuvens que se arrastavam tranquilas naquela tarde. Pedro tentava se desvencilhar do amigo que vinha implacável. Em minutos, Gus já estava com sua linha por baixo da linha do adversário pronto para desferir um puxão que a cortaria instantaneamente, porém antes de tomar tal decisão, sentiu que a sua própria linha ia perdendo firmeza, caindo como um fio de cabelo, enquanto sua preciosa pipa vagava pelo ar desgovernada.
_Mandado! _Gritou um menino ao longe.
Gustavo largou seu carretel na mesma hora e disparou olhando para o céu atrás de sua pipa. Uma dezena de crianças corriam atrás do garoto, todos loucos para pegar o espólio que caía em queda livre. A pipa foi girando, levada pela força do vento, perdendo cada vez mais altitude, até que parou em cima de um telhado velho de uma casa de dois andares.
Todas as crianças congelaram, perplexas, encarando o trágico acontecimento.
Gustavo e Pedro pareciam não acreditar no que viam.
A pipa remexia-se vencedora, enganchada numa antena parabólica, parecendo zombar da molecada.
De repente a porta da casa se abriu em um estrondo. Uma confusão se seguiu, com crianças correndo para tudo que era lado. Apenas Pedro e Gustavo ficaram; talvez o medo fosse tanto que os pobres infelizes haviam até se esquecido de como se usava as pernas.
O "monstro" os encarou com aqueles olhos sem vida, cadavéricos, parecendo que a qualquer momento daria um de seus gritos guturais.
Pedro sentiu seu coração acelerar, enquanto que uma fina linha de suor gelado escorreu pelo seu rosto.
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O monstro da Rua Straus
Krótkie OpowiadaniaSerá que um "monstro" que vive sozinho, sem amigos, deve ser visto como uma aberração?