Prólogo

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O vento gélido arranhava as janelas como um pedinte de rua. O cálice balançava suavemente em movimentos circulares, envolvido por mãos pálidas e unhas vermelhas. Isabel umedeceu os lábios antes mesmo de levá-lo à boca pela segunda vez, o cheiro doce do líquido escarlate inebriava os sentidos. Sorveu um gole demorado, mas não derramou uma gota sequer pelos cantos. Quando repousou o cálice no parapeito da janela, estava vazio.

Havia algo no ar, uma espécie de tremor, um aviso indefinido. Remexeu-se levemente incomodada com a sensação, procurou no recinto algo que pudesse ameaçar sua vida – ou o que ela considerava como vida.

Nada.

Apenas o uivo da noite a lhe fazer companhia em um chalé úmido, grande o suficiente para abrigar uma família, solitário o bastante para descansar após uma noite difícil. A cobrança pesava em seus ombros como uma insônia pertinente. Abriu a janela e deixou que a brisa noturna acariciasse o seu rosto – fazia anos que o frio não podia mais tocá-la.

Os dedos roçaram em um anel que continha uma rosa em alto relevo. Aquilo não era simplesmente uma joia, tampouco um adorno. Representava um status, uma posição diferenciada dentro da sociedade criada séculos atrás.

Isabel nunca desejou se sentar em uma das cadeiras do conselho, mas eles decidiram que assim seria. Sua tutora e criadora havia morrido deixando esta herança indigesta, arrancando-lhe o direito de escolha.

Um clarão estourou nos céus, projetando tons arroxeados sobre sua face, e mais uma vez a sensação a invadiu com força.

Esta noite não seria como as outras.

Não seria.


Sob o Manto da NoiteWhere stories live. Discover now