O mundo é um verdadeiro mercado de almas. Almas que se vendem já vazias, sem resquício de existência. Almas pesadas, cabeças conturbadas, ruas cheias, um banco e um violão. Respiro fundo, ajeito meu óculos redondo, e começo a tocar. Toco com delicadeza cada corda do instrumento, e delicadamente toco também almas em meio à multidão. Até que ponto viveremos como máquinas?
Alguns param, apreciam um pouco, e abrem um sorriso. Precisamos nos desligar às vezes. Outros continuam na caminhada pra alcançar algo, espero que pra isso não tenham muitas perdas.
A tarde está nublada, daqui a pouco irá chover. Trouxe o meu guarda-chuva amarelo, mesmo o dia estando bem ensolarado quando saí pela manhã. Já acostumei a levar ele para todos os lugares que vou, e ultimamente, tem chovido muito por aqui.
Toco mais algumas músicas, e levanto quando sinto gotas frias escorrerem pelo meu rosto. Começou a chover. Fico sob um telhado de uma casa azul, puxo o meu banco de madeira, e coloco sobre ele o meu chapéu. Muitas moedas, algumas notas. Acho que é o que faltava para pagar a conta de água.
Abraço o meu violão, como se ele fosse fazer o frio passar. Sabia que não era para eu ter saído com a regata. Não dei sorte. Tento me concentrar em outra coisa, talvez mudando o foco o frio de alguma forma passe.
O barulho da chuva caindo, pessoas apressadas com guarda-chuvas abertos. Carros com janelas fechadas, pessoas paradas sem parar de pensar. No outro lado da rua, um rapaz anda com uma mochila pela chuva, ele não parece se importar muito com o céu desabando sobre a sua cabeça. Ele para em frente a uma senhora, diz palavras contadas, e guarda em seu bolso algo que me parece ser três moedas de cinquenta centavos. O que leva esse rapaz a pedir esmolas?
Ele atravessa a rua, e caminha à minha direção. Seu nariz e olhos estão vermelhos, e quase não se percebe, mas lágrimas escorrem pelo seu rosto aparentemente cansado.
-O senhor pode me dar algum dinheiro?- Ele pergunta baixinho, me olhando como se eu tivesse em minhas mãos a esperança que ele desejava.
E eu realmente tinha. Olho para o meu chapéu, e depois olho para ele. Ele me encarava de forma tão intensa. Seu olhar era um misto de emoções que eu não consegui decifrar nem a metade.
-Moço? –Ele diz, com uma voz um pouco rouca, e tocando no meu braço.
-Ah, sim. Claro – Saio um pouco dos meus pensamentos e pego todas as moedas e notas. Não tinha tanto dinheiro assim.
Ele estende a mão, e eu coloco o dinheiro nela. Ele olha para todas aquelas moedas e sorri. Um sorriso sincero, mas que deixava em mistério muitas coisas. Quantas dores podemos esconder atrás de um sorriso?
-Muito obrigado, senhor- Ele guarda as moedas no bolso, ainda com o sorriso no rosto.
-De nada- Eu digo, sorrindo também.
Coloco o meu chapéu na cabeça, e bato duas vezes no banco.
-Sente-se, você vai ficar resfriado se continuar nessa chuva.
-Não precisa não, moço. Pode sentar- O sorriso não está mais em seu rosto.
-Eu gosto de ficar em pé- Eu digo, e sorrio mais uma vez. Ele faz o mesmo e senta.
Ele usa uma camisa de manga larga, e como eu, está tremendo de frio. Sua calça jeans, assim como todo o seu corpo, está encharcada. Seu tênis, em bom estado, não deve ter mais do que dois meses de uso.
-Qual o seu nome?-Eu pergunto, fazendo-o desviar a sua atenção para mim.
-Rafael Vieira. E o seu?
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O Homem Quase Invisível
RomanceAlgumas vezes, é necessário muito mais do que ver. Quando você aprende a enxergar, você descobre muitas coisas que sempre estiveram ali, mas que você não via. E eu te enxerguei, e você estava em meio à multidão, pedindo esmolas na chuva. Eu vi em vo...