Era um negro parrudo. Negro desses que, por uma questão social, nunca se disse negro. Moreno limite. O mundo bem o aceitava assim, talvez por ser filho de uma figura respeitada, mesmo que sem muitas posses. Construiu, com o passar dos anos, a própria autoridade e orgulhava-se de seus feitos. Cultivava sob as ventas um bigode farto desde mancebo. Não havia foto sua onde aquela graúna negra não impedisse quem quer que fosse de ver seu lábio superior (talvez fosse essa parte de sua anatomia uma lenda, cuja inexistência era mantida como segredo).
Homem letrado, apesar de não ter verso em palavras ou cálculos. Tinha fama de taciturno pelo pouco que falava. A ironia de sua existência como filho de músico era sua péssima dicção. Não que fosse tímido, mas gostava de estar junto a seus botões, principalmente quando o acusavam – sempre pelas costas – de ter uma macaúba na boca. Falava quando tinha algo de útil a dizer. Se não, continuava a carimbar suas páginas sem reação para os ruídos do centro que se intrometiam em seu ofício de tabelião, ainda que atento à quase todos.
Certos ruídos, porém, não eram tão fáceis de ser ignorados. Nesta categoria se incluíam os netos. Não era particularmente chegado a nenhum deles. Uma pequena horda faladeira que, nos meses de férias, se unia sob as asas da avó para os mais diversos mimos. Sua mulher havia amolecido com aqueles meninos. Ele não admitia, mas seu próprio coração também tinha afrouxado com a chegada de cada um deles.
Dentre todos, havia a pequena dupla que mais se ausentava de seus dias. Moravam na capital. Chegavam na sua casa de visita, ocupando espaços que eram somente dele. Uma, magrela e morena. Tinha os mesmos olhos pequenos que ele encarava todo dia ao pentear os cabelos negros, ralos e lisos. A outra, apesar de baixa, era cheia, alva e sempre tinha um sorriso na cara. Falava pelos cotovelos, em um tom de voz estridente do qual os primos, muitas vezes, fugiam.
A de olhinhos pequenos era uma enxerida. Perdeu as contas de quantas vezes a menina havia invadido sua rede. Dormia na cama que sua mulher mantinha no quarto por mero capricho, roubando o lugar onde seu relógio e os controles da televisão jaziam durante a noite. Uma inconveniência que sua esposa permitia com um sorriso no rosto, levando-o a se conformar com o desconforto pela felicidade de sua proximidade.
Foi ela quem, entre uma carimbada e outra, lhe estendeu a mão com um pedido de bênção. Segurou a mão da menina e a abençoou sob os pelos do bigode, enquanto os olhos vagavam em busca de com quem ela estava. Como a resposta não se materializou na sua frente, teve que perguntar, voltando os olhos para os próprios papeis.
— A vó me deixou aqui e disse que eu volto pra casa com o senhor.
Não lhe deu resposta para além de um balançar de cabeça positivo. Dez minutos para o final do expediente da manhã.
Era enxerida, mas quase comportada aquela menina. Viu-a pedir a bênção aos outros parentes enquanto descansava o carimbo sobre a almofada de tinta. Espiou com o canto dos olhos ela encarar a máquina de escrever como se fosse um presente de natal ainda posto sob a árvore, vez por outra deixando que os dedos tortos se demorassem sobre as teclas, sem as apertar.
Levantou da própria cadeira e a chamou. Quase sorriu quando a mão pequena se embrenhou entre a sua – grande e forte o suficiente para esmaga-la com um aperto. Por sorte a casa ficava perto, ainda que o sol quente e a fome encompridassem o caminho quase que infinitamente.
Ao seu lado, a menina ia calada. Graças a Deus não era a irmã tagarela. O que chamou sua atenção, porém, era para onde ela olhava. Sabia não ser ela uma abestada. Vivia estranhamente pregada em livros, mas não deu sinais de que, tão nova, havia perdido o juízo. Os olhos, porém, não saiam do chão, assim como os ombros se curvavam para ele. A falta de postura não era um pecado imperdoável, mas, enquanto os quarteirões para chegar em casa diminuíam e seus cabelos finos grudavam em seu couro cabeludo com o suor, sua irritação aumentava.
— Minha filha, você tem que andar olhando para frente. Uma menina bonita como você... A gente tem que mostrar orgulho de ser quem é, não parecer que está com medo.
Ela parou. Os dois pares de olhos miúdos se encararam por um segundo. Ele já havia visto a filha reclamar da postura da menina, assim como quase todo o resto da família. O que lhe doía, porém, não era que ela fosse torta, mas que parecesse sempre temer o próximo passo a ser dado.
Sentiu quando os dedos pequenos lhe apertaram um pouco mais a mão. Viu-a erguer os ombros de uma forma mecânica, ficando em uma postura ereta que não lhe era natural, enquanto os olhos voltavam a fitar o chão. Poderia ter continuado o caminho os dois. O sol estava quente e as mangas da camisa não ajudavam com o calor.
— Olhe para frente, minha filha. Que quem anda olhando pro chão não tem como saber o que o que está por vir.
Ela ergueu o rosto. Os passos foram retomados.
De quando em quando, era ele quem olhava para baixo, admirando a face erguida dos dedos que não afrouxaram o aperto de sua mão.
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