Colo

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Aquele lar de muitos quartos – oito, num total, sendo cinco deles separados da rua por uma escada longa, que ficava do lado de fora da casa – não era o favorito da menina. Sobravam quartos, faltava a algazarra dos primos ou de quaisquer outras crianças. O fantasma da cadela morta que assombrava o segundo andar (uma dessas histórias sem pé nem cabeça que a empregada contava para evitar que os pés pesados da menina e de sua irmã assombrassem o sono da tarde dos adultos) não servia de distração suficiente para a pouca idade das duas irmãs. 

Era triste ser neta única. Dividia esse posto com a irmã, mas nem por isso deixavam de ser isso: netas únicas. Nenhum dos tios tinha se dado ao trabalho de casar e constituir família. Talvez fosse até mais triste do que ser filho único, já que, por aquela época, a irmã pouco lhe fazia companhia. E irmão não é primo. Não é aquela amizade próxima pela familiaridade, mas distante por todas as outras circunstâncias. Nas férias, esta tristeza ainda era maior sentida, principalmente quando tinha que visitar o interior quente e poeirento onde viviam os avós.

Quando conseguia escapar dos olhos da empregada, durante as tardes calorentas nas quais não conseguia se aquietar (se mal dormia a noite, quem dirá a tarde), arrastava a irmã escada acima. Desorganizava os velhos brinquedos da tia, tirava sinfonias falhas de um pequeno piano, folheava os livros de filosofia do tio que achava nunca antes terem sido abertos, rabiscava com giz o quadro negro que ocupava um dos quartos e ensinava para a irmã as lições aprendidas durante o semestre letivo. Tudo muito atenta para produzir o mínimo de barulho possível e não acordar os adultos ou o fantasma da cadela.

Não se pode negar, porém, a magia única da casa de uma avó. Principalmente se a sua fosse uma exímia doceira. Bolos de coco, doce de leite, sobremesas de abacaxi, doce de mamão... Tudo quente, saindo do fogo, deixando o ar da cozinha açucarado. Na verdade, nenhuma sorte de comida faltava. Batata frita e refrigerante no almoço, lanches fartos. Os jantares, por sua vez, eram normalmente comprados fora. Não havia quem não gostasse de pizza ou sanduíche entre os tios, apesar de, no fogão, a sopa do avô sempre ser suficiente para alimentar a família inteira.

A melhor das coisas daquele lar de muitos quartos, porém, era a avó. Era jovem. Mais do que se podia entrever pelas muitas rugas de seu rosto e de seu corpo, pelo andar cansado e pelos sorrisos falhos. A tarefa de fazer doces já tinha sido delegada para as empregadas, sob sua atenta supervisão. Tinha um vício insanável por efervescentes – era religioso que tomasse um logo após o almoço, e, se a neta tivesse sorte, conseguia goles o suficiente para sentir as bolhas estourando em seu nariz. Se não tivesse, ela se oferecia para levar o copo sujo até a pia da cozinha, e fazia o trajeto com o nariz enterrado no que restara do remédio. Como uma personagem de filme antigo (ou de programa infantil) usava bobes nos cabelos ralos, pintados de dourado em sinal de vaidade.

Tinha sido bonita noutra época. Apesar de as comissuras dos lábios gostarem de se manter voltadas para baixo, em uma eterna demonstração de desagrado, o sorriso que deixou de herança para a única filha iluminava as faces outrora cheias quando perto de suas meninas. Há pouco tinha trocado um físico gordo pela magreza dos muitos problemas de saúde. O pai sempre falava do coração da mãe. Era grande demais. Estava sempre prestes a falhar. Não que tal informação fizesse algum sentido na cabeça da neta.

Se o coração era grande, não havia melhor sinal de que fosse forte. Pelo menos era assim que sua cabeça infantil pensava. A avó nunca estava doente quando lhe dava presentes – e eram muitos, uma das vantagens de ser neta única. E se ainda naquele ano (ou teria sido no anterior? Ela nunca fora muito boa em contar o tempo, perdia-se nele com uma frequência surpreendente até mesmo para uma criança) o pai a havia elogiado por ter subido os três lances de escadas que davam para o apartamento onde a menina morava, na capital. Não devia ser nada grave. Uma falha pequena, decerto, que um pouco de descanso e alguns efervescentes curariam.

Além do que, gente doente não podia pegar sereno, e não havia noite na qual as cadeiras não fossem postas na calçada. Como a casa ficava na única avenida da cidade, havia muito a ver. Era rápida a frequência com a qual passavam conhecidos prontos para uma parada e um dedinho de prosa. O tio com os dois pés da frente da cadeira sem encostar no chão e as costas escoradas no muro. A avó com a cadeira do outro lado do portão, de frente para a rua e para as cadeiras onde o pai e a mãe estavam sentados sem o privilégio de encarar, do outro lado da avenida, o muro do Grupo onde a avó tinha sido diretora.

A escolha da menina de onde sentar-se não poderia ser mais óbvia. O colo dos pais era habitual. O do tio, prescindível. Jogou-se nas pernas da avó e não demorou a pôr o braço dela por cima do seu próprio corpo, apenas para poder apertar as peles que lhe sobravam sob aquele aconchego. O muro do Grupo nada tinha de interessante e, dos conhecidos que passavam, ela não gostava de quase nenhum – para a menina, eram mais desconhecidos que faziam os mesmos elogios sobre ela, para seus pais e para a avó, a cada período de férias.

— Minha filha, você está pesada demais para ficar em cima da sua avó. Venha pra cá.

Foi a mãe quem falou, tão logo a menina viu-se apertando um especial pedacinho de pele entre os dedos. Um absurdo sem tamanho! Logo a mãe, que concordava toda vida que o pai dizia que ela mais parecia um espeto de virar tripas. Antes, entretanto, que pudesse organizar seus argumentos para uma defesa a sua magreza, a avó a apertou em seu abraço.

— Deixa a menina. Não estou cansada.

O sorriso da menina foi de vitória. Voltou a apertar as peles das quais tanto gostava (sempre com cuidado para não machucar) enquanto aconchegava a cabeça sobre aquele coração grande demais que ainda batia.  

Contos da NetaWhere stories live. Discover now