VAZIO

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Estava uma manhã fria. Devido à chuva perdurável dos últimos dias, o sol nascera tímido, escondido entre as nuvens densas que não tinham pressa de saírem dali. A brisa gélida percorria em minha pele fazendo os meus pelos se erriçarem. Ao longe, entre as árvores, era possível ouvir alguns pássaros cantando uma melodia triste. Era como se soubessem do meu luto. Da minha dor. A única coisa quente que se encontrava ali eram as lágrimas que escorriam pelo meu rosto.

Meus braços vacilavam com o peso do corpo. Meu pai havia pedido para que o colocasse no chão, mas eu recusara. Queria segurá-la pela última vez, acariciá-la por mais alguns minutos, pois ainda não estava preparado para me despedir. Fiquei forte, em pé, enquanto meu pai cavava um buraco fundo na terra molhada. Meu coração batia com a mesma intensidade que a pá quando encontrava o chão.

Era para ser um domingo como qualquer outro: tirar o lixo para fora; separar o uniforme da escola do dia seguinte; verificar se o dever da aula de segunda estava feito; e ficar o dia todo lendo quadrinhos ou assistindo reprise dos desenhos na televisão.

Meus olhos abriram sem relutância. Domingo era o único dia que era permitido ficar de pijama o dia todo, por isso, fui direto para a mesa do café. Berta preparara os quitutes logo cedo. Nunca faltava bolo de milho com queijo e as famosas roscas de canela.

Meu pai estava sentado na ponta da mesa lendo o jornal, entre uma página e outra ele bebericava o café preto numa xícara de porcelana. Minha mãe fazia aviãozinho com a colher cheia de frutas amassadas na tentativa de fazer a Bebê comer. Carlota estava sentada ao meu lado na mesa, com os fones no último volume e uma tigela de cereal a sua frente.

- Bom dia, Benzinho - disse Berta entrando na copa segurando um prato com ovos mexidos e um copo de suco de goiaba. - Vou aproveitar que o menino acordou e vou subir para limpar o quarto. Se deixar, fica lá o dia todo e me atrapalha na programação.

Berta está na família muito antes de eu nascer. Para ser mais exato, mamãe a contratou quando Carlota nasceu. No acordo inicial, Berta ficaria tomando conta das obrigações da casa enquanto mamãe dedicava seu tempo à Carlota. Mas mamãe sempre gostou de trabalhar, menos de três meses depois do parto, já estava de volta aos palcos, deixando Berta cuidando da primogênita.

Berta me entregou o suco de goiaba e o prato de ovos mexidos para o meu pai. Deu-me um beijo de bom dia e subiu as escadas.

Peguei uma fatia já cortada do bolo e algumas torradas com geleia de morango. Intercalava as mordidas com goles do suco. Comi no silêncio habitual da nossa mesa.

Sempre me perdia nos pensamentos. Quando se é sozinho, - pelo o menos sempre me senti - é fácil criar uma relação individual consigo mesmo. Era novo, mas já tinha opiniões para muitas coisas.

O mundo não é tão complicado como os adultos costumam dizer.

"Quando você crescer, você vai entender".

A verdade é que eu entendo muito melhor do que deles. Claro que não faço a mínima ideia do que seja Revolução Francesa ou uma parábola - Carlota disse que aprenderei quando estiver no ensino médio. Mas sobre a vida? Sei! E muito.

Sei que o Coelho da Páscoa e o Papai Noel deixaram de existir desde meus quatro anos; Tenho um palpite de onde vêm os bebês - mas isso eu não posso falar em voz alta; O verdadeiro motivo de o meu tio Zulu estar preso, e não é uma injustiça, como minha mãe gosta de dizer; Que meus pais pararam de discutir depois que meu pai passou a dormir no sofá da sala; Que Carlota não era mais virgem - a ouvi dizer isso para alguém ao telefone - foi daí que concretizei minha teoria sobre de onde vêm os bebês; Que a tia Cristina e a tia Tita são mais do que simplesmente amigas...

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