I
Dois anos antes deste singular casamento, residia à Rua de Santa Teresa uma senhora pobre e enferma.
Era conhecida por D. Emília Camargo; tinha em sua companhia uma filha já moça, a que se reduzira toda a sua família.
Passava por viúva, embora não faltassem malévolos para quem essa viuvez não era mais do que manto decente a vendar o abandono de algum amante.
Havia uns laivos de verdade nessa injusta suspeita.
Quando moça D. Emília Lemos teve inclinação por um estudante de medicina, que dela se apaixonara. Certo de que seu afeto era retribuído, Pedro de Sousa Camargo, o estudante, animou-se a pedi-la em casamento.
Vivia Emília na companhia do Sr. Manuel José Correia Lemos, seu irmão mais velho e chefe da família. Tratou este de colher informações acerca do moço. Veio ao conhecimento de que era filho natural de um fazendeiro abastado, que o mandara estudar, e tratava-o à grande. Não o tinha porém reconhecido, o que era de suma importância, pois, além de existir a mãe do fazendeiro lá para as bandas de Minas, o sujeito ainda estava robusto e podia bem casar-se e ter filhos legítimos.
À vista destas informações entendeu Lemos que não se podia prescindir de certas formalidades, dispensáveis no caso de ser o rapaz herdeiro necessário. O irmão de Emília era apenas remediado, e já custava-lhe bem aguentar com o peso de doze pessoas que tinha às costas, para arriscar-se ainda ao contrapeso de mais esta nova família em projeto.
– Por nossa parte, não há dúvida, meu camaradinha. Arranje a licença do papai, ou o reconhecimento por escritura pública; o resto fica por minha conta.
Era uma recusa formal, porquanto Pedro Camargo jamais se animaria a confessar o seu amor ao pai, que lhe inspirava desde a infância, pela rudeza e severidade da índole, um supersticioso terror.
– Sua família me repele, Emília, porque sou pobre e não posso contar com a herança de meu pai – disse o estudante a primeira vez que encontrou-se com a namorada.
A irmã de Lemos sabia pelas explicações dos parentes que efetivamente era aquele o motivo da recusa.
– Ela o repele porque é pobre, senhor Camargo; mas eu o aceito por essa mesma razão.
– Quer ser minha mulher ainda, Emília? Apesar da oposição de seus parentes? Apesar de não ser eu mais do que um estudante sem fortuna?
– Desde que o motivo da oposição de meus parentes não é outro senão sua pobreza, sinto-me com forças de resistir. Que maior felicidade posso eu desejar do que partilhar sua sorte, boa ou má?
– Eu não me animava a pedir-lhe esta prova de seu amor, Emília. Você é um anjo!
Quinze dias depois, Pedro Camargo parava à porta de Lemos em um carro. Era a hora do chá; estavam todos na sala de jantar. Emília, que se recolhera a pretexto de incômodo, desceu a escada sem que a percebessem.
No dia seguinte pela manhã, Lemos, de jornal aberto, tomava nota dos anúncios, tarefa habitual com que estreava o dia, quando lhe entregaram uma carta. A capa era de relevos, e o conteúdo um quarto de papel cetim com estas palavras:
Pedro de Sousa Camargo
e D. Emília Lemos Camargo
têm a honra de participar a V. Sa. o seu casamento.
Rio de Janeiro etc.
Na casa de Lemos ninguém acreditou em semelhante casamento. Para a família, a moça não era senão a amante de Pedro Camargo; e por conseguinte uma mulher perdida.