I
Chegando a seu aposento Seixas nem teve tempo de sentar-se.
Arrimou-se como um ébrio à cômoda que estava próxima ao corredor, e ali ficou no estupor da alma, violentamente subvertida pela crise tremenda. Parecia uma criatura fulminada, na qual arqueja apenas um último sopro. Sua respiração angustiada sibilava-lhe nos lábios, como as vascas do moribundo. E era este o único sinal de vida, nessa organização jovem e rica de seiva.
De repente saiu daquele torpor, mas foi preciso um esforço supremo para arrancar-se à insânia que o invadia. Em seu rosto desenhou-se o pavor que dele se havia apoderado com a ideia de que a vida o abandonava, ou pelo menos que a luz da alma ia apagar-se.
– Deus! Não me tires a vida neste momento. Agora mais do que nunca preciso de minha razão.
Seixas arrojou-se pelo aposento a passos precípites, esbarrando-se nos trastes, batendo de encontro às paredes; alucinado e ao mesmo tempo impelido pelo desejo de arrebatar-se à obsessão que o aniquilara.
Correu pela casa um olhar ansiado, buscando algum objeto a que seu espírito se agarrasse, como o náufrago que trava do menor fragmento no meio das ondas em que se debate. O rico toucador, esclarecido por duas arandelas de cristal com velas cor-de-rosa, ostentava os primores do luxo.
Então, nessa alma sucumbida, luziu uma centelha. Foi o instinto da elegância por certo a corda mais vivaz dessa índole poética e fidalga.
Seixas aproximou-se do toucador, levado por indefinível impulso; e entrou a contemplar minuciosamente os objetos colocados em cima da mesa de mármore; lavores de marfim, vasos e grupos de porcelana fosca, taças de cristal lapidado, joias do mais apurado gosto.
À proporção que se absorvia nesse exame, ia como ressurgindo à sua existência anterior, a que vivera até o momento do cataclismo que o submergira. Sentia-se renascer para esse fino e delicado materialismo, que tinha para seu espírito aristocrático tão poderosa sedução e tão meiga voluptuosidade.
Todos esses mimos da arte pareciam-lhe estranhos e despertavam nele ignotas emoções; tal era o abismo que o separava do recente passado. Era com uma sofreguidão pueril que os examinava um por um, não sabendo em qual se fixar. Fazia cintilar os brilhantes aos raios da luz; e aspirava a fragrância que se exalava dos frascos de perfumaria com um inefável prazer.
Nessa fútil ocupação demorou-se tempo esquecido. Porventura sua memória, atraída pelas reminiscências que suscitavam objetos idênticos a esses, remontava o curso de sua existência, e descendo-o depois o trazia àquela noite fatal em que se achava, e à pungente realidade desse momento.
Recuou com um gesto de repulsão. Esses primores de arte que pouco antes lhe acariciavam a imaginação agora inspiravam-lhe nojo. Apartou-se do toucador, e chegou à janela.
A noite estava plácida e serena. No céu recamado de estrelas, a brisa cariciava uns frocos de nuvens alvas como a penugem das garças. Uma onda trépida garrulava na bacia de mármore coberta de nenúfares, que alçavam os grandes e níveos cálices, aljofrados de orvalhos. O arvoredo, que recortava-se bizarramente no horizonte luminoso como um relevo gótico, estremecia com o doce arrepio da aragem, que esparzia os aromas das rosas e das magnólias.
Seixas parou um instante a contemplar a doce placidez da natureza. Essa calma suave da noite penetrou-o. Relaxaram-se-lhe as fibras da alma.
Apoiando a fronte à ombreira da janela deixou cair as lágrimas que lhe assoberbavam o seio.
Depois desse pranto que o desafogou, Seixas aproximou-se da elegante escrivaninha de mirapininga, e a abriu. Ainda chegou a puxar a pasta de chamalote escarlate. Na aba superior, dentro de um florão branco, aparecia bordado em debuxo de ouro o seu monograma, F. R. S., entrelaçados.