5. Felina

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O choro cessou e meus olhos alcançaram a porta entreaberta, a alguns passos de distância

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O choro cessou e meus olhos alcançaram a porta entreaberta, a alguns passos de distância. A varanda e o gramado pareceram pequenos demais para comportar, entre todos os outros sentimentos daquele dia, meu medo. E eu teria ido embora, deixando os cômodos livres para serem invadidos por qualquer um, se não fosse a parte maior de mim, entre os sintomas de fobia, que não aceitava sentir aquilo. Substituindo o medo pela sensação quase amigável de tentar entender por que aquele gato insistia em ficar na única casa que não poderia recebê-lo bem.

Porque eu sabia que a senhora da casa ao lado tinha dois ou três gatos e não se zangaria em adotar mais tantos. Que o homem da casa da frente já tivera um há alguns anos. Que as crianças da Dona Bete gostavam tanto de gatos como de cachorros e insistiriam para a mulher deixá-los ficarem com aquele bichano no instante em que o vissem. Que os gatos que perambulavam nossos muros eram alimentados pela mulher estranha da primeira casa. Eu sabia que qualquer outro canto serviria para um felino, mas ele, que deveria ter seus instintos de segurança, não. E havia me esperado, durante as horas a fio em que bebemos e aguardamos sua aparição, no quarto, próximo da cômoda, como se só eu lhe importasse, não os outros. Quem, em sã consciência, não se importaria com Cadu, Gustavo e Rodrigo? Rodrigo, vá, até que poderia provocar uma vontade de trancar a porta e não o deixar entrar, dia ou outro, dependendo de seu humor. Cadu, talvez, por ser o primeiro a se despedir e, mesmo assim, o primeiro a se apresentar de volta. Mas Gustavo? Ninguém ignoraria as luzes neon que o circulavam enquanto falava o que ninguém no mundo teria melhor vocabulário para dizer. Mas o gato os ignorou. Revelou seus pelos cinzas, suas patas brancas, sua fenda entre os olhos, seu miado um pouco mais baixo dessa vez apenas para mim. Que não era destaque nenhum. Que tinha enfrentado o mundo para viver sozinha. Que depois tinha percebido que estar sozinha era a única coisa que me afetava.

E esse gato.

Parecendo uma brincadeira sacana da Dona Nena, lá do céu, se é de lá que os que vão nos olham, provando seu ponto de que eu precisava de alguém.

O tremor vinha de trás dos olhos e perpetuava-se pelos cílios, causando uma disritmia que não me permitia ver além daquela porta. Mas quando encarei o céu, implorei para que aquilo acabasse. De alguma forma que eu não sabia como. Que apenas acabasse como as luzes da rua que se apagariam daqui meia hora. Uma estrela em destaque me chamou a atenção. Cobri o olho direito com a mão e os dedos fizeram uma sombra inexistente para o outro, melhorando a visão míope a oeste. Seu brilho me fez dar passos para longe da casa. Àquela altura, meus instintos se aguçavam, como se a presença do gato me fizesse felina também. E, talvez, se ele ficasse mais um pouco, poderíamos nos assemelhar.

Andei pensando na porta entreaberta. Sempre me disseram que o condomínio era seguro o suficiente, e pela primeira vez me importei para que realmente fosse. Se todos os seguranças não puderam livrar minha casa de um gato, que a livrassem, ao menos, de ladrões.

Eu precisava andar mais e respirar mais, mas cada passo diminuía o ritmo da minha pressão. Eu tinha tornado minha casa o único ponto seguro de minha vida e agora fugia dela? Parecia inaceitável demais simplesmente deixar meu lugar. Como um gato ousava ficar onde eu morava? Se eu tivesse coragem, o pegaria e levaria até o centro de animais abandonados mais distante para que nunca tornasse a encontrar esse caminho. Eu diria, com ele no colo, carregando-o como a mãe que leva o filho para a escola, que a vida funcionava daquele jeito: você não pode escolher onde quer estar, pode apenas se adaptar ao lugar onde o colocam.

Se eu pudesse, entraria naquela casa e daria um sermão de três horas seguidas, como só minha avó conseguia, para aquele bichano. Ele escutaria desde os problemas causados por ele mesmo até os problemas com o quais não tinha nada a ver, mas de alguma forma parecia ter agora.

Meu cabelo coçava, minhas pernas coçavam, as costas doíam, eu precisava de um banho. Frio.

Retornei meu percurso e avistei a casa novamente. A casa azul. Porta branca. Vasos de plantas na entrada. Gramado. Janelas. Gato.

Ele me esperava na janela, como se já conhecesse todos os pontos da casa nos quais poderia ficar com mais conforto, como se soubesse que era ali que eu ficava, despretensiosa, esperando um retorno de Cadu; como se não tivesse aprendido comigo que aquilo não mudava em nada, porque Cadu voltou quando eu estava trancada em um quarto; como se apontasse essa verdade na minha cara: com ele, o felino, a espera na janela tinha funcionado.

O gato e seu olhar de atravessar vestes, pele, ossos, órgãos, para atingir sua alma em cheio. O gato e sua pose imóvel, olhos vidrados, orelhas atentas. Ele faria cair uma armadilha sobre mim quando eu atravessasse a porta? Ou julgava meu medo com um olhar de humano que nunca soube entender uma garota com receios bobos? Ele ria, por dentro, do meu andar vacilante até onde estava? Ou ele era melhor que isso, um gato feito uma criança que o afaga quando os adultos não o entendem?

 Ele faria cair uma armadilha sobre mim quando eu atravessasse a porta? Ou julgava meu medo com um olhar de humano que nunca soube entender uma garota com receios bobos? Ele ria, por dentro, do meu andar vacilante até onde estava? Ou ele era melho...

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Resposta nenhuma me faria agir da maneira que o fiz: escorreguei pela porta para não forçar nenhum barulho, tranquei-a e sumi corredor adentro para me trancafiar no escritório, perto de meu celular, de minha foto com Cadu, dos cactos, do sofá da vó Nena, do puff de Gustavo; na minha fortaleza.

O gato não miou, não impediu que eu fechasse os olhos e cochilasse por dez minutos. Mas o celular vibrou e tocou em cima da mesa rompendo com o sonho que eu iniciava. Na tela, o indicador de que essa era a décima quarta chamada telefônica. Os nomes Cadu, Rodrigo e Gustavo brilhavam, vermelhos, como chamadas perdidas. Meu coração se descompassou outra vez. Eu não passaria daquela noite. Peguei o celular para retornar as chamadas ao mesmo tempo em que abria a porta. No ouvido, um toque de ligação recusada de Rodrigo. Na porta, um miado de animal recusado por mim. Respirei fundo antes de desabar em choro.

Eu não aguentava aquilo.

Não aguentava.

Meus amigos poderiam estar em uma situação grave e eu estava trancada em uma casa por causa de um gato. Eu chutaria a porta, eu bateria o pé no chão para fazê-lo correr, eu gritaria para afastá-lo, mas nunca tive coragem e agora, em conjunto a isso, não tinha mais forças.

A respiração vacilava e o motivo já era desconhecido. Muita coisa na cabeça, eles chamam. Não tentei mais ligar, atravessei o corpo pela janela, derrubando os cactos. Peguei a bicicleta da vó Nena. Larguei o celular na cesta à frente, atenderia na primeira tentativa de ligação. E pedalei noite afora com o desespero de um soldado em guerra contra dez mil homens. Onde eles estavam enquanto eu mesma não me sentia mais no lugar?

 Onde eles estavam enquanto eu mesma não me sentia mais no lugar?

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