Capítulo 1

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Termino meu banho com muita dificuldade, a preguiça me abraça de uma maneira insistente, não costumo trabalhar aos sábados, mas jamais poderia negar um pedido de uma amiga de adolescência, além do mais ela mora ao lado dos meus pais, tenho a possibilidade de fechar um negócio e ainda visitar a minha mãe. Apresso-me no café da manhã, já estou dentro do carro me preparando pra sair da garagem quando meu celular vibra, no visor identifico o nome do meu sócio, atendo sem qualquer empolgação.
— Guilherme onde você está? - ele indaga.
— Bom dia pra você também Carlos, estou saindo da minha garagem.
— Ótimo! Estou a caminho da casa da Grazielle, vê se não demora, ainda não entendo porque ela exige fechar essa filmagem com nós dois juntos, um de nós poderia muito bem fazer isso!
— Chegar lá vamos ficar sabendo! ― respondo.
Desligo e enquanto dirijo para meu destino lembranças vagam sobre o tempo que conheci a Grazi, éramos adolescentes, lembro o dia em que a mudança dela chegou para a casa ao lado da minha, ela, o irmão e os pais, ah sim, e um cachorro infernal chamado Bug, eu odiava aquele cachorro e era recíproco, um vira-lata bem cuidado que teimava em grunhir toda vez que me via. Mas nem ele atrapalhou o lance que tivemos, naquele mesmo ano descobri que estávamos matriculados no mesmo colégio, e surpreendentemente na mesma sala, claro que logo surgiu uma amizade boa, era fácil estar na presença dela, eu podia ser eu mesmo, sem máscaras e sem amarras, foi assim todo o Ensino Médio, ela foi uma grande amiga, me ouvia e me entendia, a gente ficou por um tempo legal, mas nada de namoro, ficava com ela, mas tinha liberdade de ficar com outras garotas, passamos para a mesma faculdade, desta vez cursos diferentes, igualmente íamos e voltávamos juntos, não poderia ser diferente, o lance só foi estendido por mais tempo, nossas famílias se aproximaram bastante, de modo que passávamos datas comemorativas como Natais e aniversários juntos. A casa dela se tornou uma extensão da minha e vice-versa, é nessa vibe de bons pensamentos que estaciono em frente à casa da minha mãe, Dona Lucinda vai ficar feliz com a minha visita repentina, não venho muito aqui, tudo mudou há mais ou menos um ano e meio, quando iniciei minha empresa. Minhas visitas foram diminuindo proporcionalmente. A desculpa pra visita rápida será a mesma que uso sempre, "muito trabalho", afinal eu e o Carlos somos sócios, temos uma empresa de filmagem e fotografias profissionais, fazemos book para modelos, 15 anos, casamentos, essa é parte remunerada da coisa, mas amo mesmo filmar o mundo, as dádivas de Deus, os animais, o tempo, era algo que eu amava e que o curso de Publicidade e Propaganda, em que me formei, me despertou para esse lado, mostrar a todos como eu vejo o mundo; Bato a porta da casa da Grazi e o Gustavo a abre, fico meio decepcionado pois achei que seria recebido por uma pessoa mais baixa, mais curvilínea e com um sorriso esplendoroso, não essa carranca que está em minha frente agora. O cumprimento e ele pede que eu siga para a sala do jardim de inverno. A casa está exatamente como me lembro no último natal em que passei aqui. Mas ainda é início novembro, então nada de enfeites por enquanto. Ouço as gargalhadas antes de avistar as pessoas que conversam, estou sendo seguido por Gustavo em meu encalce e paramos quase em sincronia quando me deparo com uma jovem sentada em uma cadeira de rodas, muito magra, as roupas nem parecem que lhe pertencem de tão grandes, um lenço cobre sua cabeça, uma manta esconde suas pernas, mas os seus olhos possuem um brilho incomum ao me fitar. Eu reconheceria esse brilho em qualquer lugar. "Grazielle".

Os risos cessam. De repente sinto-me envergonhado por ter interrompido algum momento de descontração. Mas a pergunta crucial que não para de rolar na minha cabeça ainda me perturba. " O que aconteceu com ela?" Ela parece perceber o que penso, pois o seu sorriso acaba e baixa a cabeça, envergonhada. Só então dou conta que a estava encarando, Carlos vem ao meu socorro, me cumprimentando, dando-me tempo de reação, Gustavo senta numa poltrona ao lado da irmã e me encara ferozmente. Sento no sofá e cumprimento Grazielle.
"Desculpe a demora Grazi, fiquei acordado até tarde ontem, e acabei perdendo um pouco a hora!" - tento me explicar.
"Não se preocupe Gui, o Carlos já me falou da sua noite de dedicação a adiantar alguns trabalhos que estavam atrasados!" - Hein? Tem nada atrasado. Olho para Carlos que se apressa em explicar:
"Que foi? Só comentei com a Grazi que o último 15 anos que cobrimos estava um pouco atrasado por conta da pane no seu computador!" - ele me revela a desculpa que deu a ela pra que nós não entremos em contradição.
"Ah sim! Isso mesmo! Meu computador! Acredita que tive que comprar outro? Perdi a placa mãe dele e foi melhor logo comprar um novo." - minto descaradamente, sou mestre nisso, mentir pra mim é como beber água, natural. Grazi se atém apenas em prosseguir com o motivo o qual nos chamou ali.
"Eu entendo! Fico feliz que tenha conseguido arrumar o problema a tempo. Até por que chamei vocês aqui hoje como profissionais, eu estou precisando dos seus serviços, no caso, preciso de uma filmagem e de um book..." - ela é interrompida pelo irmão:
"Grazi, não faça isso. Por favor, minha irmã!"
"Gustavo, eu já pedi para você parar com isso, já tomei minha decisão, eu preciso que isso seja feito, eu quero!"
"Mas existem tantos outros profissionais nesta área, por que precisa que seja logo o Guilherme?" - eu não gostei de ouvir isso, que danado que esse cara agora está me marcando?
"Por que ele me conhece, sabe do que gosto, e confio no trabalho dele, ele é o melhor que temos aqui na cidade, e é com ele que eu quero que seja feito, ou melhor, com eles, os dois são os melhores!"
Fico lisonjeado, mas vejo Gustavo se afundar na poltrona em sinal de rendição. Nada pode ser feito quando a Grazi coloca uma coisa na cabeça. Nada. Isso eu sei bem. Ela então respira profundamente, segura a mão do irmão e vira-se em nossa direção para continuar.
"Então meninos, onde parei?"
"Você precisa de uma filmagem e de um book..." - Carlos a responde.
"Isso! Preciso de um book tipo memorial, e de uma filmagem com alguns amigos dando depoimentos sobre minha vida, como sou, o que gosto, o que me anima, alegra, o que me irrita essas coisas sabe?" - eu e Carlos balançamos a cabeça afirmativamente e ela continua.
"Eu não sei se vocês sabem..." - percebo que o tom da sua voz muda - "...mas eu estou morrendo..." - O quê? Como assim? Por que ninguém me falou nada disso? O Carlos sabia? Minha mãe sabia? Como eu não soube? Olho para Gustavo e ele parece ainda menor do que realmente é, a impressão que tenho é que a poltrona o 'engoliu', seu semblante está fechado, como se estivesse sentindo alguma dor muscular, passo meu olhar pra Carlos e ele está encarando a ponta dos seus sapatos, não olha para Grazi, retorno meus olhos pra ela, em busca do vacilo da mentira, só pode ser pegadinha, é isso! Onde é que está a câmera? Acho que daqui a alguns minutos vai pular gente escondida atrás de todo canto, e gritar 'você foi trolado!' mas ela continua – "... então eu queria algo único, idealizado por mim, passando no dia do meu funeral." - resolvo interromper aquela loucura, só pode ser brincadeira, meu serviço nunca foi pra ninguém chorar, sempre foi algo que associei a alegria, sorrisos e boas lembranças, mas isso que ela estava pedindo, se fosse verdade e não uma brincadeira de mau gosto é algo totalmente ao contrário do que eu associo. Preciso obter mais informações a fim de saber se é disso que se trata, uma brincadeira.
"Grazi, você diz que está morrendo. Quem te falou isso? Que tipo de médico diz isso ao seu paciente?"
"O tipo de médico que se revolta com a sua paciente, quando ela se nega a fazer o tratamento para curar um câncer!"
"Câncer?"
"Sim. Pra ser mais exata câncer no pulmão"
"Mas você, é, você estava saudável há quase um ano atrás..."
"Não estava. Descobri depois do Natal maravilhoso que passamos aqui, antes do réveillon, tive uma vertigem e fui levada a emergência, fizeram alguns exames, por que aparentemente eu não tinha nada, tudo dava negativo, mas daí depois de dias internada, e prestes a romper ano no hospital, fui diagnosticada, fiz tratamento por alguns meses, mas como estava já muito grande, em estágio avançado, resolvi interromper o tratamento. Quero passar o resto do tempo que tenho em casa, com quem me ama. Não quero mais ficar numa cama fria de hospital com paredes sem cor e aquele cheiro horrível que me deixa agoniada!" - eu ainda não estava acreditando! Estava prestes a fazer mais algumas perguntas quando Carlos me interrompe.
"Tudo bem Grazi, diga-nos exatamente o que você quer que façamos e será feito."
"Bem, eu quero que vocês visitem alguns amigos, colham algumas memórias que tenham comigo, e façam um 'vídeo entrevista' em que cada um terá que responder a mesma pergunta..."
"Qual é a pergunta?" - eu a interrompi, e mordi meu lábio inferior em repreensão por ter feito isso.
"Que espaço há no coração da Grazi para o amor? E no seu coração?"
"Essa é a pergunta?" - Carlos a questiona e registra a pergunta em seu caderno de anotações, enquanto ele toma nota, ela pede que o irmão pegue um envelope que ela deixou em seu quarto, ele se levanta para atendê-la. Assim que Gustavo desaparece de nossa vista, ela se remexe na cadeira e fala em um tom mais baixo que o habitual, como se estivesse nos contando um segredo:
"Eu não esqueci o envelope lá, deixei de propósito, queria alguns minutos sozinha com vocês, eu sabia que ele não me deixaria só aqui..." - sorrio dessa trela dela, afinal sempre foi desse jeitinho que eu gostava quando estávamos juntos, ela prossegue rapidamente - "... eu tenho duas regras, tudo bem até aí?" - ela pergunta - "Claro!" - Eu e Carlos respondemos juntos e ela sorri. "A primeira é que o trabalho precisa ser feito com vocês dois a cada entrevista, cada visita, cada filmagem os dois precisam estar presentes, não quero um coletando filmagem com uma pessoa e o outro com outra não, quero os dois juntos, na mesma hora, no mesmo momento, como Batman e Robin! Ok?" - "Claro!" Novamente respondemos igual - "A segunda é que preciso de um de vocês aqui a cada finalização. O motivo é muito simples, a cada dia de filmagem coletada, eu lhes entregarei um envelope com uma 'carta de despedida' para a pessoa que vocês acabaram de fazer a entrevista, e com o nome da próxima pessoa a quem vocês irão procurar, então a cada finalização de uma filmagem, vocês passam aqui para coletar a carta da pessoa e pegar o próximo nome." - eu fico mudo. Carlos faz que sim com a cabeça, acho que ele ainda está processando a informação, os passos de Gustavo são perceptíveis em virtude da sua proximidade, e então ele aparece e entrega um envelope pequeno azul claro na mão da irmã. Ela pega e o estica em minha direção. Recebo e reconheço a sua caligrafia impecável com o nome da minha primeira vítima: Vitória Viccoline, bufo pra o nome, essa pessoa me odeia. Comecei mal.
"Dentro do envelope vocês encontrarão o endereço dela e os números dos telefones. Temos um acordo? Vocês podem fazer isso por mim?" - ela interrompe a frustração que tive ao ler o primeiro nome. E rapidamente, mais uma vez, Carlos me salva.
"Claro que temos, faremos o nosso melhor, você vai ver."
"Eu espero que consiga ver, depende somente da vontade de Deus agora..." - ela sorri melancolicamente e completa "... meu irmão vai tratar sobre a questão do contrato e os valores com vocês, essa parte burocrática é chata demais pra mim..." - ela baixa o tom de voz, como se Gustavo não a ouvisse e então em seu tom de voz normal se dirige agora a ele - "... por favor, Guto, pague exatamente o que eles pedirem, nada de pechincha, agora se vocês me derem licença, eu preciso descansar." - nos levantamos e despedimo-nos dela, Gustavo chama uma enfermeira que conduz sua cadeira de rodas pelo longo corredor em direção ao seu quarto.

O meu coração não tem espaço para amarOnde histórias criam vida. Descubra agora