CAPÍTULO QUATRO - Mundo da Lua

407 74 7
                                    

Meu trabalho é meu lugar preferido da cidade, não só porque é a melhor cafeteria que conheço ou porque a decoração vintage-avermelhada é maravilhosa, ou, até, porque minha patroa é a empreendedora mais simpática e acolhedora que conheço, nem mesmo porque é o único lugar que conheço que tem uma estante de livros usados no fundo, para quem quiser ler enquanto consome o melhor café do mundo, mas, principalmente, porque Luana é a melhor pessoa do mundo.

Por isso, quando abro a porta do Mundo da Lua na terça-feira e o sino toca acima de mim, sinto meu coração se apertar por estar na minha casa, por mais que não tivesse espaço para morar aqui.

— Boa tarde – Lua diz, antes mesmo de erguer os olhos para ver quem entrou no seu trabalho.

Fecho a porta e sorrio, porque, embora seja apenas vidro, é quase como se o barulho da avenida ficasse toda protegida nesse mundo, ainda que os caminhões e os carros que passem não respeitem o limite de velocidade e tornasse esse o lugar mais barulhento da cidade. O Mundo da Lua não é barulhento – a magia acontecia aqui dentro, porque tudo o que a gente escuta é apenas os "bom-dia" de Lua e a máquina de café apitando ao fundo.

— Ah, é você – ela diz, levantando os olhos do livro que lia quando não respondi. – A Moça Baladeira. Curou a ressaca?

— Nada que dezoito horas de sono não resolva. – Sorrio, sentando-me de frente para ela.

Lua me encara com seus olhos grandes e quase negros e eu tento não desviar o olhar. É estranho como ela tenha poucos anos a mais do que eu e me deixe mais apreensiva do que meu pai. Acho que Luana é a coisa mais perto de modelo maternal que conheço, mesmo que sua franja e seus cabelos lisos, pretos, repicados, lhe dê um ar de princesa perdida no século errado, muito mais nova do que realmente é. Acho que é porque ela só tenha vinte e quatro anos e seja dona de seu próprio negócio – e, consequentemente, de seu nariz. Ou, talvez, seja porque ela me pegou no colo na infância e me conheça melhor do que meu pai. Ela ajeita a faixa vermelha em sua cabeça e suspira.

— Eu ainda quero saber que história é essa da senhorita acordar em camas desconhecidas sem lembrar do que aconteceu...

— Urgh. Juliana já deu com a língua nos dentes, foi?

— Você usou drogas?

— Só misturei as bebidas e talvez tenha passado um pouco do limite.

Ela me avalia, sem piscar. Tento manter o olhar, mas é difícil, porque é o tipo de olhar que parece que vai dissecar toda sua alma.

— Talvez. É claro – resmunga, por fim.

Antes que responda, o sino da porta toca e ela desvia o olhar.

— Vai se arrumar – ela diz, inclinando a cabeça e indicando a porta da cozinha – Boa tarde. – E sorri para o homem que entrava atrás de mim.

Suspendo a portinhola do balcão e passo, às pressas, para o lado de dentro, abrindo a porta da cozinha a minha frente e, depois, entrando no banheiro dos funcionários. A blusa de uniforme, uma lunática tomando café a luz da lua, me faz revirar aos olhos ao mesmo tempo que me faz dar um sorriso. Quando volto para a bancada, minha amiga está revirando os olhos também, enquanto o cliente se afasta do balcão carregando uma grande caneca de café expresso na mão.

Eu tusso e Luana cora no mesmo instante.

— Expresso duplo hein? – provoco.

— Que se pode dizer sobre as pessoas? – ela sussura. – Elas são estranhas.

— São mesmo.

— Então... Como o gostosão de domingo chamava?

Pelo amor da deusa, penso, tentando não revirar os olhos. Se não lembro nem do beijo ou da transa, como eu poderia saber o nome dele?

Me ajuda a te ajudar, Luana.

— Você tem que ser mais responsável, Vênus.

— Eu sou responsável. Eu me cuido.

— Você não se lembra nem o que aconteceu, e quer me garantir que se cuida? Quantos anos você acha que eu tenho?

Merda.

Ninguém me fazia me sentir tanto uma criança mimada precisando de colo quanto Luana.

— Vênus – ela diz, olhando por baixo dos cílios. – O que é que você está fazendo com a sua vida?

— História – respondo, abrindo um sorriso enorme. – Inclusive, apareceu um professor novo naquela maldita matéria de História Antiga. Já disse que odeio História Antiga?

— Hoje não. – Ela revira os olhos. – Você devia gostar dessa matéria, não acha? Quer dizer, qual a chance de você precisar estudar para ela?

— Você sabe que odeio meu nome e toda essa história ridícula. Deuses. Panteísmo – bufo. – Francamente! Quem estuda isso nos dias de hoje?

— Falou a pessoa que faz um curso que só estuda sobre coisas que já aconteceram...

— Que seja! – Dou de ombros. – Ao que parece, o professor sofreu um acidente e apareceu um novinho para substituir. Dá para acreditar? Um professor novo Departamento de História?

— Coitado. Você já deve estar louca para levá-lo para cama. Salve-se quem puder! – provoca.

— Babaca! Eu tô falando sério, não deve ter mais ninguém naquele departamento que tenha menos do que, sei lá, cento e oitenta anos. E ele não deve ser muito mais velho do que você. E ainda por cima é ruivo. Quer dizer, quantos ruivos você conhece?

— Espera aí. Ele por um acaso tem olho verde e é mais ou menos a minha altura?

— É. Ele chama...

— Pedro – diz, antes de mim. – É meu amigo. Claro que um dia vocês iam se encontrar, não é? – Dá um tapa na própria testa. – Ah, minha nossa! Ele deve ter ficado chocado quando descobriu seu nome, não é? Quer dizer, ele sabe que você chama Vênus?

Arqueio a sobrancelha.

— Vênus foi a paixão da vida dele. – Ela dá de ombros. – Foi a tese de seu doutorado.

— Quê?!

Fala sério. Aquilo não podia ser real.

— Vênus e Vulcano. Eu não sei bem, mas algo nesse sentido. – Ela me encara. – Ele é mesmo um gato, você não acha? Com toda aquela beleza exótica e coisa e tal.

— Espera aí! – digo, um pouco zonza. – É muita informação. Desde quando você o conhece? E como assim vocês são amigos? E quando foi que você achou algum cara bonito, além de Caio? E por que porra a tese dele é sobre o amor comprado de Vênus?

— Ah, bem. Desde a vida toda? Quer dizer, eu vivia na casa dele? Os pais dele eram clientes da minha mãe? A Juno foi apaixonada por ele? E ele é meu melhor amigo? Quer dizer, junto de você e do Caio? E não sei bem por que ele é apaixonado por Vênus? Nem sabia que o amor dela foi comprado? Agora você me deixou confusa? Não era um amor sincero e bonito? – ela dispara, de uma vez, em tom de interrogação.

Como assim meu professor ruivo de História Antiga foi a paixão da minha irmã? Minha irmã nunca se apaixonava por ninguém. Aquela menina tinha um coração de gelo. Nada a abalava. A não ser eu, pouco antes dela morrer.

— Luana – digo, mais alto, fazendo ela interromper o fluxo de explicações confusas. O cliente do expresso-duplo olhou para nós, mas não me importo. – Você pode me explicar o que você está querendo dizer com esse tanto de resposta-pergunta sem sentido?

— Quem diria que o mundo da faculdade seria tão pequeno, não é? – ela diz. Então, ri.

O que seria uma coisa bem normal de se fazer. Exceto, talvez, que a risada dela não tem graça nenhuma.

Tudo Aquilo Que Eu Não Sou (REPOSTANDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora