RUMO AO DECLÍNIO - Parte 2

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Seguiram juntos em seus últimos dias entre os humanos. E Joe, mostrou-lhe mais vida que todo o conhecimento do sagrado transmitido pelo Conselho. Ivanka finalmente sentiu.

    Concluiu sua busca por algo real ao lado dele, porque em seu olhar havia um motivo maior para existir, superior a sua missão no Lar das Virtudes.

    Mesmo sem coração, sem sangue a correr em suas veias, mesmo sendo o que era, Ivanka poderia afirmar que nasceu no sorriso de Joe, e ganhou vida com seu olhar.

    Joe lhe preparou panquecas após o expediente no restaurante, contou-lhe sobre seus medos, segredos, e numa dessas noites, Ivanka aprendeu a sorrir.

Gargalharam juntos em passeios pelo Central Park, ele preocupou-se com ela quando escorregou na neve, alimentou-a durante um piquenique, tocou-a muito além de sua pele.     
Presenteou-a de surpresa com um cordão prateado. Ivanka sorriu pela ironia ao ver o formato do pingente, ainda mais ao recebê-lo no meio de uma panqueca, mas prometeu usá-lo para sempre.

    Deliciaram-se da presença um do outro. Despreocupados.

    Mas Ivanka precisava se alimentar para permanecer na Terra.
Dezenas de almas eram recolhidas para dentro das orquídeas e muitas famílias sofriam com o desaparecimento de seus ente queridos.

O jardim do perdão, de tantas almas recebidas dentro das flores, tornou-se negro no Lar das Virtudes.
E ela sabia. Pressentia. Cronometrava os segundos. A despedida pairava como um vulto ameaçando sua felicidade.

    Numa tarde nublada, Ivanka viu o vulto se manifestar atrás de Joe, e pela primeira vez, Morte, provou do medo.

Por Joe.
O vulto vestia um capuz, ao tirá-lo, Ivanka o reconheceu.
Mikael, um dos membros do Conselho. Andou para longe de Joe com a desculpa de ir ao banheiro e esperou que Mikael a alcançasse.

-               Pare – ele pediu desprovido de emoção ao parar de frente para ela. – Você precisa retornar para o julgamento.

-               Julgamento? – Ivanka lutou para ocultar seu temor. – E onde está a justiça em ser criada pela vaidade dos anjos somente para servi-los? Como ousa falar de justiça, se nunca me ofereceram uma escolha?

Ela lhe deu as costas, e Mikael a segurou pelo cotovelo.

-               A cada dia que você caminha entre os humanos, mais inocentes se transformam em seu alimento. Julga isso justo?

Ivanka agitou o braço para se desvencilhar e uma tempestade desabou sobre o restaurante. Surpreendeu-se com o tamanho de seu poder.

     Os humanos correram em busca de abrigo e Ivanka pensou ter se livrado de Mikael, mas perdeu o fôlego ao vê-lo outra vez como vulto, parado atrás de Joe.  Ele não se moveu, apenas manteve o capuz abaixado, e penetrou os pensamentos de Morte.

“Despeça-se do humano essa noite. E saiba que esse único aviso, será também o seu último.”

    O vulto desapareceu e Ivanka correu para os braços de Joe que a olhou assustado. Foi tomada por alívio ao sentir os batimentos dele contra seu peito e lhe avisou que retornaria para vê-lo em algumas horas.

    Subiu o mais alto que pôde no Céu, e fez um apelo ao Conselho com toda a força que possuía dentro de si. Pediu perdão aos membros. Derramou sua primeira lágrima, prometeu compensar cada erro cometido. Cada pecado. Contou que ouvia a dor das almas dentro de si, prometeu buscar um jeito de libertá-las.

     Os membros mantiveram-se irredutíveis. Ivanka seria julgada no Penhasco no dia seguinte. Não havia perdão para as mortes que a mantinham viva na Terra. Não poderia haver perdão para um ser criado em virtude que cedia aos próprios desejos.

    Voltou aos prantos para os braços de Joe e lhe contou que precisaria partir. Abraçaram-se por horas em silêncio diante da lareira. Joe acariciava seus longos cabelos desolado, com a respiração curta.

-               Prometo que lembrarei de você para sempre. – Disse a ele por fim, ao criar coragem.

Pela primeira vez sentia-se morta, agora que era obrigada a lhe dizer adeus.

-               Por que você precisa partir? – Ele tomou suas mãos. – Não posso ir junto? Fiz algo errado?

Ivanka despedaçava-se por dentro. Por um breve momento, compreendeu a dificuldade de ser humana. Qual o propósito de sentir tanto assim, se no final das contas, tudo terminava em despedida?

-               Você fez certo, Joe. Muito mais do que jamais mereci.

-               Você merece tudo, Kath. – Ele a segurou pelo rosto. – Nunca senti isso por mulher nenhuma.

-               Eu só queria a chance de ter alguma coisa real. – Ivanka afundou o rosto em seu pescoço. - Me perdoa, Joe. Me perdoa.

-               Perdoar? Por me fazer sentir vivo? – Ele a encarou segurando seus ombros – Mais real do que isso?

   Joe aproximou os lábios dos dela, Ivanka recuou ligeiramente assustada. Ele esperou, a puxou com suavidade pela nuca, e brincou com os polegares em sua bochecha.

-               Amanhã eu estarei de folga, e quero te levar em um lugar importante pra mim. Promete que não vai desaparecer, Kath?

    Ivanka cedeu ao desejo lhe consumindo por dentro, passou os braços em torno do pescoço de Joe, mergulhou na ternura de sua alma rosada e provou seus lábios macios.
Foi no toque de lábios apaixonados, que ela, Morte, nascida no Lar das Virtudes, descobriu o verdadeiro paraíso.

    Suas mãos fortes e quentes sob sua pele lhe deram vida, desejo, paixão. O beijo a esquentou tanto, que a fez pensar que possuía sangue nas veias. Os cheiros, os toques, as sensações, a fizeram esquecer o que a aguardaria ao nascer do sol.

Joe interrompeu as carícias por um instante.

-               É muito cedo pra dizer que te amo? – Ele sorriu, e ela, antecipando a despedida, fez questão de memorizar suas covinhas, seriam sua força para suportar o vazio.

-               Se for, então é cedo pra mim também. Porque eu te amo, Joe.

    Beijaram-se. Amaram-se. E o mundo não existia mais.

    O alerta chegou quando os primeiros raios de sol penetraram a janela. Ivanka correu pela sala assustada e fechou as cortinas ao dar-se conta do erro cometido, estava atrasada. Olhou para Joe no sofá, tinha as bochechas rosadas, o cabelo bagunçado, e sua ternura estampada em sorriso.

    Suspirou aliviada e piscou os olhos devagar. Quando os abrisse, partiria, era a hora do adeus, não podia mais adiar.
Mas ao abri-los, viu o vulto atrás de Joe, que engasgava e segurava a garganta com ambas as mãos.

    Ela alcançou Joe, tentou sentir seus batimentos mas não encontrou. Ivanka caiu de joelhos sob o tapete com o corpo de seu amado no colo, incapaz de gritar o tamanho de sua dor. O vulto parou a sua frente e lhe estendeu uma pequena orquídea branca.

“Nós avisamos. Você tem até a noite para o julgamento, é nosso último ato de bondade por sua perda. Saiba Ivanka, foi você quem buscou essa dor." Lhe disse antes de desaparecer.

    Ficou ali com Joe nos braços até o por do sol. Ao ver a última nuance de sua alma rosada pulsar na escuridão, guardou-a no pingente de seu colar. Segurou a orquídea branca no chão, levantou-se vestida de Morte, e nunca mais sentiu outra vez.

A Morte - Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora