Ano Novo

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Ana percebia como todos estavam felizes e sorridentes, menos ela. A típica e conhecida sensação de renovação que parece se apossar das pessoas na virada de ano era facilmente transmitida pelas risadas altas, conversas animadas, copos de bebida nas mãos de cada pessoa com quem ela cruzava. Tudo isso apontava para a famigerada e inexplicável crença - inerente a todo novo início de ano - de que os problemas do ano anterior simplesmente sumiriam, dando lugar a um novo ano cheio de boas perspectivas e possibilidades de mudança.

Ana já estava cansada disso. Ela havia sido uma dessas pessoas, sempre fazendo questão de comemorar o réveillon com amigos ou família, os que eram importantes para ela, no melhor estilo: festas com música, pista de dança, bebidas, buffet... impulsionada pela entrada do novo ano e todas as resoluções que isso hipoteticamente traria. Até que ela percebeu que, embora os anos se passassem, ela ainda continuava no mesmo lugar.

Seu relacionamento de quase 10 anos, os últimos 2 elevados ao status de noivado, tinha terminado algumas semanas antes. Seu ex-noivo, Rafael, recebeu uma bolsa de doutorado na Alemanha, a qual aceitou sem pestanejar ou mesmo discutir o assunto com Ana.

Bem que ela estava mesmo estranhando a demora para o casamento acontecer, e a relutância de Rafael em falar sobre esse assunto nos últimos meses de noivado. Quando ele fez o pedido, havia um acordo implícito de que passariam a morar juntos em no máximo 6 meses, e se casariam em até 1 ano. No entanto, quando chegou o momento de decidir quem ia se mudar para onde, ou se buscariam um apartamento novo, ele foi se esquivando cada vez mais, mudando de ideia frequentemente ou inventando desculpas. Ao mesmo tempo, estava secretamente se inscrevendo em processos seletivos de doutorado em universidades por toda a Europa e América do Norte, sem comentar nem mesmo uma palavra com a noiva.

Até que, quando foi aprovado em um, veio apenas informar a Ana que estava de partida. Ela poderia ir junto? Sim, poderia. Sua carreira profissional no Brasil era uma vergonha. Apesar da formação em uma instituição de renome e das várias especializações, seu emprego era patético. Ela o largaria facilmente para ir morar com o noivo na Alemanha. Porém, tinha sido convidada? Não, não tinha.

Assim, Rafael partira no início do mês, deixando um vazio na vida de Ana que ela não via perspectivas de ser preenchido. Quando se passa 10 anos com alguém, é difícil imaginar sua vida sem aquela pessoa; sua companhia constante nos finais de semana, conversas sobre como foi o seu dia, atualizações sobre os conflitos familiares, programas e planos para o futuro.

É claro que Ana havia sido convidada para a festa de Ano Novo de sua família, e também para viajar com os amigos para a praia. Ela tentou, por várias vezes, decidir em conjunto com Rafael o que prefeririam fazer. Porém, todas as tentativas foram frustradas pelas esquivas dele, ou comentários de "tanto faz, é você quem sabe" que mais tarde ela veio a descobrir que se deviam à sua intenção, já existente na época, de dar um fim à relação e se mudar do país.

No fim das contas, com o término do noivado - que ainda não havia sido informado a nenhum dos seus familiares -, ela acabou optando por passar a virada do Ano em casa, sozinha. E não pretendia nem mesmo colocar os pés na rua, se não fosse pela geladeira vazia que encontrou após um dia inteiro fotografando um evento esportivo no sol. Com frequência, o jornal a fazia trabalhar nos finais de semana, cobrindo os eventos da cidade e ainda exigindo que ela entregasse a matéria pronta no mesmo dia. Assim, naquele domingo de véspera de Ano Novo, Ana chegou em casa à noite, exausta, e ainda teve que parir um texto antes de poder se dar conta de que estava com fome. Quando terminou, já eram quase dez e meia da noite, e sair a essa hora para comprar comida significava ter que ir a algum estabelecimento 24h, o que implicaria em passar pela avenida principal, onde provavelmente todas as pessoas da cidade estariam, já iniciando o aquecimento para a queima de fogos.

E assim, lá estava ela. Caminhando na rua à noite, voltando para casa segurando o pacote com o seu jantar, cruzando com grupos animadíssimos que dançavam em roda ao ritmo da música que a banda tocava no coreto da praça. "Pobres iludidos" - pensava ela, enquanto acompanhava as danças dos corpos e os gritos das vozes que já começavam a demonstrar os sinais da embriaguez - "Ainda não perceberam que é só isso que terão para o novo ano: sua patética vida de sempre, seus bons e velhos si mesmos. A boa e velha eu mesma. A boa e velha Ana. Isso é o que tem para hoje. É o que tem para o ano. Esta é a Ana do Ano...". Mas, o que ela não sabia, é que aquele era também o Ano da Ana.

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