Existe aquele momento da vida que você descobre que a sua experiência deu errado. Geralmente, é quando você percebe que tem gostos peculiares que pouco têm a ver com um quarto com brinquedos sexuais e que, de um modo geral, você não se adapta nem se encaixa em nenhum tipo de grupo. E esse momento sempre é doloroso.
Eu não me achava uma garota diferente.
Quando me olhava no espelho, via uma garota como a maioria das garotas. Eu tinha dois braços, duas pernas, dois olhos, um nariz, uma boca. Meu cabelo ainda era castanho, o que me fazia pertencer à maioria, outra vez. Eu aprendi a falar e a andar na faixa etária normal. Meus dentes de leite caíram na curva padrão de todo mundo. Estava tudo ótimo. Até que.
Sempre tem um "até que". Eu tive dois que foram muito marcantes para mim. E não de um jeito bom.
O meu primeiro "até que" foi quando comecei a ser alfabetizada. Todo mundo da sala aprendeu a ler primeiro. A professora dizia que estava tudo bem, meus pais me deram muitos livros e minha mãe praticava comigo todos os dias antes de dormir. Mas alguma coisa não se encaixava. As letras no papel não faziam sentido, como se fosse um novo idioma, muito mais difícil, que só eu conseguia ver. Piorava quando tinha que ler em voz alta, porque, por vontade de acertar e medo de retaliação, ficava tão nervosa que não enxergava letra nenhuma. E não conseguia explicar para as outras pessoas o que acontecia comigo.
Terminei o primeiro ano de alfabetização lendo muito mal. Conseguia compreender morfemas simples: bola, casa, gato. Mas, se tinha casa e cara na mesma linha, eu não sabia diferenciar. Meus pais continuaram falando que não havia nenhum problema comigo, que algumas crianças têm mais dificuldade do que as outras. Mas, quando o segundo ano de alfabetização terminou e eu lia pior do que as crianças do primeiro, eles decidiram que, talvez, não fosse assim tão normal.
Foi aí que comecei a pular de médico em médico, na busca de um diagnóstico que aliviasse meus pais. Eu não era burra, era o que todos diziam. Eu era boa em matemática, ainda que não genial. Tinha coordenação motora, falava bem, era criativa e, raramente, incomodava na sala de aula. Exceto por aquele pequeno probleminha que cada dia ficava mais gigantesco: não conseguia aprender a ler.
Levou anos para que achassem o que eu tinha. E até hoje me espanto em como foi por acaso. Minha mãe não foi trabalhar no dia, porque Júlia estava muito doente, e, enquanto eu via televisão, e ela corria de um lado para outro, tentando fazer a febre da minha irmã baixar, o jornal da manhã começou e o tema da matéria era dislexia. Eu tinha nove anos e fiquei intrigada com a palavra, repetindo várias vezes para tentar aprender. Era um método que fazia para tentar ler – e que funcionava na maior parte dos casos. E talvez tenha sido isso que chamou a atenção da minha mãe. Ou a frase da repórter ao definir como "dificuldade de leitura".
De todo modo, a partir desse dia, deixei de ser uma criança normal e me tornei a criança disléxica.
Não foi de todo ruim, na verdade. Depois que isso ficou esclarecido, meus professores passaram a ter mais paciência comigo. Frequentei médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e, em dois anos, consegui ler como a maior parte das crianças da minha idade e, na maior parte do tempo, as pessoas nem se lembravam que eu tinha aquele pequeno probleminha. Exceto quando tinha que ler textos muito longos, ou escrever por muito tempo, tudo parecia perfeitamente normal.
Eu era uma garota normal.
Aí eu fiquei adolescente.
Ninguém é normal na adolescência, mas eu sabia que era um pouco pior para mim. Por conta da minha dificuldade em aprender a ler, cresci uma garota retraída, tímida e muito insegura. Minha única amiga era Vênus, que nunca se importou pelas vezes que gaguejei na frente da sala. Foi por isso que ela se tornou minha melhor amiga. Porque, apesar de ser uma garota cruel e sádica muitas vezes, ela nunca riu de mim – pelo menos, não riu do meu problema. Das outras coisas ela ria, mas isso não era importante.
Quando você é a criança que está no centro das piadas e retaliações, invariavelmente você cresce uma adolescente com dificuldades de relacionamento. É lógico e cruel e era minha desculpa perfeita por não conseguir conversar em grupos e, principalmente, com garotos.
Eu sabia que não era só isso. Eu via garotas da minha idade loucas por caras idiotas, beijando um atrás do outro sem se preocupar com nada. E eu não conseguia achar graça nenhuma naquilo. E não achar graça era um choque e tanto, especialmente quando sua melhor amiga era a garota que mais beijava na boca em toda sua escola.
Vênus nunca teve restrições. Ela achava divertido as loucuras que fazia. Bebia desde os quinze anos, fumava, se drogava, passou por maus bocados até aceitar tratamento numa clínica de reabilitação, e, por muito tempo, culpei o jeito tresloucado dela por minha falta de vontade de divertir como todo mundo se divertia.
Não que fosse culpa, exatamente, dela. Mas, quando você tem uma amiga louca, que fica bêbada e sempre parece disposta a dar vexame, você acaba ficando responsável por ter que diminuir os impactos disso. Quer dizer, você bebe menos, para que consiga cuidar dela. Ou está sempre de olho, com medo do que pode acontecer. É como acabar se tornando uma babá de alguém que tem a sua idade. Não é legal. Mas se tornou minha desculpa perfeita.
"Não, eu não posso ir para um canto mais reservado com você, porque, olha, tá vendo minha amiga? Olha o estado dela. Ela não pode ficar sozinha", era minha frase preferida. E quase todo mundo me olhava com um misto de admiração seguido de uma expressão que deixava claro que me achavam trouxa. E, tudo bem, eu sou mesmo um pouco trouxa.
Mas não era só isso.
Eu não sabia o que era – mas eu sabia que era diferente. E isso era um inferno, porque tudo o que um adolescente quer é ser igual. E eu queria ser igual. Eu queria beijar na boca e gostar, em vez de sentir gosto de papelão. Eu queria falar de sexo sem sentir... nada. Eu queria olhar para um cara e querer ficar com ele. Mas eu não queria.
E, quando todo mundo quer essas coisas e faz essas coisas, e você é a única que não quer, não é legal.
Não que eu sentisse nojo de beijar na boca. Mas é que tinham tantas coisas melhores para fazer do que trocar saliva com alguém...
Como ver séries e filmes, por exemplo, que acabaram se tornando minhas primeiras paixões. E, depois, por ironia do destino, ler. Primeiro porque livros estimulavam minha capacidade léxica e me faziam treinar a leitura, de forma que as coisas ficavam menos difíceis para mim. E, depois, porque me possibilitavam viver uma vida normal, segura, e muito diferente da que eu vivia: uma vida que eu não era a garota idiota que não sentia atração por ninguém.
Ler me possibilitava ser coisas maravilhosas: uma aluna de Hogwarts, um Hobbit na Terra Média, um humano no meio do espaço. Uma burguesa num salão de festas lotados por duques e condes. Uma adolescente em sua primeira paixão. Eu conseguia ser uma garota que podia vivenciar um interesse por alguém, sem que fosse eu.
E isso, sim, era maravilhoso.
Porque eu podia ser qualquer coisa que quisesse ser, sem deixar de ser eu. Mas, principalmente, e mais importante do que isso, sem ser eu.
E isso era muito melhor do que qualquer cara real que quisesse se relacionar comigo.
Até que aconteceu.
Cês sabem que não vou postar a história toda aqui, porque ela foi pensada para outro meio digital, mas estou disponibilizando os primeiros capítulos para vocês dizerem o que acharam. É muito importante o feedback <3 lembrem-se que menina jubsjubs é insegura hahahahahahaha
(umas pessoas sentiram falta das minhas notas finais, então resolvi aparecer!)
Felicis pra quem apoia a literatura nacional*
& beijos cafeinados.
VOCÊ ESTÁ LENDO
As Estrelas Sabem
ChickLitLer possibilitava Juliana viver diversas experiências - desde um amor avassalador na época vitoriana até uma viagem espacial. E estava tudo bem por isso: era melhor suspirar por um casal que ela sabia que teria um final feliz a sofrer com medo de um...