Assim que ouvi Shay dizer que faria a ordem dos grupos não perdi tempo. Meu grupo precisava ser o próximo. Corri até o professor e avisei que seríamos o próximo grupo. Meus colegas não pareceram gostar muito, mas Shay já havia anotado e disse que não mudaria mais. Ele anotou nossos nomes e olhou o cronômetro. Mandou que nos ficássemos nas posições.
Fui até a margem da floresta e esperei pelo apito. Ouvi o som agudo e comecei a correr. Tentei correr para uma direção que me afastasse dos outros do grupo. Acompanhei os apolíneos que corriam na direção certa com os olhos, esperando que estivessem longe o bastante para não notar meu comportamento estranho. Diminuí o passo e comecei a caminhar.
Meu coração pulava dentro do peito. Era por conta da corrida, mas não diminuiu muito seu ritmo porque eu estava nervosa. O que eu pretendia fazer não era algo rotineiro e muito menos legal. E digo legal nos dois sentidos. Tinha total noção de que se de fato eu fizesse o que tinha em mente não poderia ficar ali. Teria que fugir e rápido.
Percorri a floresta com os olhos cautelosos. Procurava por uma árvore com um tronco um pouco mais grosso, para que pudesse me esconder quando soasse o apito novamente. Esperava que fosse audível daquela distância, caso contrário teria que olhar a aproximação do próximo grupo. De qualquer maneira, era melhor ficar atenta.
Encontrei um tronco caído. Sentei no chão perto dele, ficando bastante escondida de olhos que pudessem me ver de longe. Esperaria ali por um tempo até achar que já poderia me preparar para a chegada do próximo grupo. Apoiei a cabeça no tronco e olhei para as folhas nas árvores. Elas balançavam um pouco com o vento. Talvez se tudo desse certo eu pudesse vir à floresta mais vezes.
Aquilo não estava sendo nem um pouco produtivo, então me levantei e procurei por galhos caídos. Não que eu não confiasse em minha própria força, que já havia se mostrado suficiente, mas era melhor me garantir. Peguei um galho comprido e o parti ao meio. Talvez o usasse, mas queria crer que não era seria necessário.
Ouvi ao longe um som que parecia um apito. Poderia muito bem ser o piado de um passarinho, mas eu não iria esperar para descobrir. Corri até um lugar que estivesse na área em que o próximo grupo viria correndo. Encontrei a árvore de tronco mais grosso que pude e me posicionei atrás dela. Agora era só esperar. Logo ouviria as pisadas das pessoas e precisaria só checar se quem se aproximava era um alvo bom.
Minha audição me avisava que alguém se aproximava. Dei uma olhada e vi que era Ravi, um menino disforme. Voltei o corpo para trás da árvore e me encolhi um pouco, torcendo para que eu passasse despercebida por ele. Esperei até ver Ravi continuar sua corrida e ficar bem afastado.
Agora já ouvia atentamente a aproximação do próximo. Não era tão rápido quanto Ravi, estava muito atrás dele. Espiei, dessa vez com mais cuidado. Que sorte a minha! Era o magricela. Não consegui conter um leve sorriso. Era minha chance, meu alvo fácil. Tudo que precisava fazer era agir no momento certo. Voltei o corpo novamente e me posicionei atrás da árvore. Precisava que ele continuasse a reta que fazia, senão tudo iria por água abaixo. Fechei os olhos e me concentrei no som. Chegando perto. Mais perto. Muito perto... Agora!
Pulei no momento certo para que pudesse cair bem a sua frente, alguns instantes antes de nossos corpos se chocarem. O perfeitinho mal teve tempo de reagir àquilo. Posicionei os pés de um jeito que mesmo com o impacto eu continuaria de pé. Talvez um pouco atordoada, mas só. Assim que vi ele tombando para trás e notei que ele havia perdido o ar, mas eu não perdi tempo. Chances como essa só se tem uma vez.
Eu ri. Não acreditava que ia mesmo fazer. Então joguei o peso de meu corpo nele. Obviamente, o mocinho tentou se defender e virar o jogo, mas para o azar dele, ele lutava comigo. Segurei seu tronco com as pernas, assim me mantendo por cima. Antes que ele tentasse outra manobra, dei o primeiro golpe.
Um soco de direita bem no nariz. Eu tinha consciência que um soco bem dado no nariz atordoava bastante. Já via os olhos dele confusos. Ele movimentava as mãos desesperadamente, tentando me fazer parar, mas aquilo só me dizia para que continuasse. Soquei seu rosto quantas vezes achei necessário até saber que aquilo ali não teria muito concerto. Ele sangrava bastante. Fiz um corte perto da sobrancelha, com alguma sorte quebrei o nariz e deixei um corte que ficaria bem dolorido na boca.
Quando notei que o rapaz não lutava mais, parei e o encarei. O rosto ferido e ensanguentado. Olhei para minhas mãos também sujas de sangue. Ele não era mais harmônico. Não tanto quanto antes. Precisaria de alguma cirurgia, cairia o nível de beleza, perderia o status de apolíneo classe um. Isso só poderia mostrar uma coisa. Provava, na verdade.
Finalmente eu tinha a prova que precisava. E ao vivo, em cores, pelas minhas mãos. Apolíneos se diziam perfeitos. A imagem deles era perfeita, mas eles não. Não de verdade. Se fossem realmente perfeitos não perderiam sua beleza assim, de forma tão insignificante e rápida. Era isso. Sempre soube que algo estava muito errado. Não era possível serem tão gloriosos como diziam ser, como todos os disformes falavam. Eles estavam errados e nem era tão difícil achar o erro, bastava tentar.
Eu ri novamente. Apolíneo ou disforme. Já não me importava. Todos éramos imperfeitos e eu comprovara isso para mim mesma. Levantei e dei mais alguns chutes nas costelas e no abdome do magricela desacordado. Só para finalizar, nem chutei tão forte, foi só um adeus. Eu nunca mais veria aquele cara. Não podia. Tudo o que me restava agora era fugir. Porque o que eu fizera era imperdoável. Não se tratava tanto da agressão como todos pensariam. Era claro que essa seria a justificativa para muitos. Mas a realidade que se escondia no fundo, nos primórdios desse mundo era que eu havia ferido muito mais que um corpo, eu havia ferido a verdade absoluta e incontestável que eles pregavam. E se eu a havia ferido, talvez não fosse tão absoluta e incontestável assim. Esse era o perigo. Ninguém podia saber disso, por isso iriam me calar.
Olhei em volta. Ninguém em meu campo de visão. Corri. Não sabia para onde iria, ou muito menos o que aconteceria, mas eu sabia de uma coisa que muitos dos meus irmãos disformes não sabiam. Isso bastava.
Minhas pernas se movimentavam o mais rápido que podiam, meus pulmões trabalhavam desesperados por ar, e meu coração batia como um condenado. Era isso o que eu era agora. Uma condenada. Então corri como tal. Cheguei ao rio em pouco tempo. Sem pensar muito pulei e comecei a nadar até o outro lado da margem. A água estava muito fria e a correnteza atrapalhava bastante. Mesmo assim continuei. Atravessei o rio e segui correndo acompanhando seu curso. Nada estava certo. Agora minha vida seria uma completa incerteza - como se antes já não fosse – e tudo o que eu me perguntava agora era: quando serei descoberta? Porque definitivamente aquilo não ficaria impune.
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MILA - Um Conto de A Disforme
Short StoryAssim que descobriu como seria aquela aula surpresa e cheia de convidados inesperados, Mila tomou um decisão precipitada e muito drástica, que mudaria a vida dos que se envolvessem com o caso. Agora a garota de fato entendera qual era sua realidade...