In Media Res

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Inútil, sem função, a motivação raramente bate à porta. Arrastando-se pelos cantos, suas asas outrora puras, agora sujas pela areia pútrida do deserto. Sem sentido, sem direção, invisível, incolor.

Sua mente ardilosa se virava contra ele, o anjo era mais humano que aparentava. Estava sujo. Não pela areia, tampouco pelo pecado, estava sujo pela culpa. A culpa o acorrentou num estado de vazio profundo, ligando sua consciência a um poço profundo e escuro, onde não há mais saída. As memórias de sua casa ainda entorpecem sua dor, mesmo que nostalgia de relembrar seu esplendor ainda o afete, como uma criança a cutucar a ferida que permanece suja e fresca em sua pele. Logo, sua mente já estava num caminho obscuro e tortuoso que o levaria à apenas uma saída: a morte. Não queria ter que partir, não desse jeito. Não havia nada para ele no outro lado, não queria ter que permanecer e nem partir nesse estado. Então a queda apareceu, e se tornou a única saída plausível.

Para um anjo, a queda é pior que a morte. Um anjo é feito por Deus, um mensageiro dele para permanecer com ele. O que é então um anjo, senão uma extensão do Cordeiro? Portanto, se afastar Dele é como se afastar de seu âmago, de sua indefectível missão de existir. Porém, cair afigurou-se melhor que apagar-se. A única saída. Agora sua mente vaga em círculos, vagueando em busca de se montar novamente, em ânsia de se afogar e se desfazer em cacos, para enlouquecer o frágil, entretanto culpado anjo.

Suas mãos pálidas agora eram rubras, enegrecidas pela fúria irracional, carregada pelos sentimentos que nem um homem e nem um anjo conseguem explicar, sequer entender em sua totalidade. Agora, o anjo procura os próprios cacos, na angústia de saber que irá quebrar novamente, por desilusões e uma grande transgressão que o sufoca.

Algo em seu interior o lembrou. Talvez um breve contato com a luz, uma pequena luminosidade que adentrou pelas brechas desconexas de sua mente para juntar alguns cacos que ainda não foram desfeitos. Estava morto. Não ele, outro. Um irmão, semelhante, da mesma carne, da mesma energia, com a mesma missão. A transgressão corroía a sua sanidade. A dor era manifestada como lágrimas que não caíam. Algo lhe disse aquilo, provavelmente a culpa, provavelmente o que restou de sua mente, ele matou por inveja. O outro tinha uma joia preciosa em seu colar dourado, ele queria aquela joia. Não podia comprar, roubar era uma opção. Existem vários pecados, provavelmente vários livros descrevendo-os. Porém, os homens esquecem-se do pior e mais importante de todos, porque dele se derivam outros e dele se tem o pior carma. O pior pecado de todos é roubar. E o anjo tinha feito isso. Não roubou apenas a joia, roubou a vida de seu irmão, e o carma roubou o que restava de si mesmo.

Aconteceu perto de uma pequena e delicada nascente. O sangue de seu irmão tornou a água carminada como vinho. Foi apenas um golpe na cabeça, um único acerto para ter sua preciosa joia. Rápido e fácil como mentir. Sabemos como termina praticamente antes de começar. Era o começo do fim, tudo começou a ruir.

O anjo cai, chora. Compadece-se diante do que fez, agora sabe que não pode mais mudar o que aconteceu. Era um observador, um fantasma, um carteiro sem remetente. Seu coração é como suas asas, ambos não batem mais. Há apenas um enorme espaço desocupado e escuro em seu peito. Suas puras plumas não são mais brancas, tampouco puras ou carminadas. São sem cor, insignificantes.

O anjo agora é como pedra quebradiça, frágil ao exterior violentamente orquestrado, esperando por uma nota pacífica para finalmente respirar. É como uma estátua delicada, que luta incessantemente para reparar seus cacos que insistem em quebrar e virar pó, como lágrimas sinceras na chuva.

O anjo agora chora, o escritor audaz tenta transcrever com luta sua tristeza em palavras.

O AnjoOnde histórias criam vida. Descubra agora