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NÃO EXISTE MAIS UMA ÚNICA PESSOA INTEIRA NESTE MUNDO E
NADA MAIS SOMOS QUE DISCÓRDIA E COMPLICAÇÃO.
O que chama-se vulgarmente personalidade é um complexo e não um completo.
Uma personalidade concordante, milagre! Pra criar tais milagres o romance psicológico
apareceu. De então, começaram a pulular os figurinos mecânicos. Figurinos, membros,
cérebros, fígados de latão, que, por serem de latão, se moveram com a vulgaridade e a
gelidez prevista do latão.
Oh! positivistas da fantasia! oh ficções monótonas e resultados já sabidos!... Fräulein é senhorinha modesta e um pouco estúpida. Não é dama nem padre de Bourget. Pois
uma vez em defesa própria afirmou: "Hoje a filosofia invadiu o terreno do amor", que
surpresa pra nós! Ninguém esperava por isso, não é verdade? Daí uma sensação de discordância, eminentemente realista.
Eu sempre verifiquei que nós todos, os do excelente mundo e os da ficção quando
excelente, temos os nossos gestos e idéias geniais... Pois tomemos essa frase de Fräulein
por uma idéia genial que ela teve. E tanto assim que produziu uma surpresa nos leitores
e outra em Sousa Costa e dona Laura. De tal força que os abateu. Estão, faz quase um
minuto, mudos e parados. Sousa Costa olha o chão. Dona Laura olha o teto. Ah! criaturas,
criaturas de Deus, quão díspares sois! As Lauras olharão sempre o céu. Os Felisbertos
sempre o chão. Alma feminina ascensional... E o macho apegado às imundícies terrenas.
Ponhamos imundícies terráqueas.
— Mas Laura você devia ter falado comigo primeiro!
— Mas quando é que eu havia de imaginar!... A culpa foi de você também!
— Ora essa é boa! eu fiz o que devia! E agora ela vai-se embora!
A lembrança de que Fräulein partia, lhes deu o sossego desejado. O mal foi dona
Laura acentuar:
— E ele é tão criança!
— Tão criança? você não vê como ele está!
Sousa Costa não vira quase nada ou coisa nenhuma, o argumento porém
— era fortíssimo.
— Pois eu lamento profundamente que Fräulein vá embora, Carlos me preocupa...
Está aí o filho do Oliveira! E tantos!... Eu não queria que Carlos se perdesse assim!
Viram imediatamente o menino mais que trêmulo, empalamado, bêbedo e jogador.
Rodeavam-no, ponhamos, três amantes. Uma era morfinômana, outra eterômana, outra
cocainômana, os dois cônjuges tremendo horrorizados. Carlos desencabeçara duma vez.
Nojento e cachorro. E o imenso amor verdadeiro por aquele primogênito adorado, cresceu dentro deles estrepitosamente Dona Laura abaladíssima desafogava as memórias:
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Amar, verbo intransitivo
RandomAmar, Verbo Intransitivo é um livro de autoria de Mário de Andrade. Foi publicado em 1927. O livro conta a iniciação sexual de um adolescente com uma mulher madura, uma alemã institutriz contratada pelo pai do jovem.