Capítulo 5

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Metatron ajeitou-se em sua cadeira e continuou a escrever, com as próprias mãos, novas diretrizes de organização para a biblioteca pública de Belo Horizonte. A Voz de Deus continuava a trabalhar sem a menor preocupação com sua posição e os pormenores de sua chegada. Quando desceu como humano ele já era o responsável pela biblioteca, existindo dentro do sistema do governo. Tinha nome, identidade, CPF, até mesmo um currículo pronto. O Criador não fazia nada pela metade, então era de se esperar que o Escriba Celestial recebesse uma posição daquele nível, com atribuições que se encaixavam em sua persona, nomeada Enoque.

Ficou satisfeito por ser chamado de Enoque enquanto preso neste corpo humano, visto que este era um de seus vários nomes, e o mais conhecido entre os homens.

Sábio, escritor e anjo. O mistério de Enoque e Metatron, que eram confundidos como o mesmo ser, permitiu ao Arcanjo falar e escrever para os homens sem se revelar. Uma pena que seu livro, o Livro de Enoque, não seja mais levado a sério, basicamente estudado em pequenos nichos nesta era. Tal era a essência humana, contudo: esquecer, mas não ele, não Metatron, ele jamais se esquecia de algo.

Ouviu duas pequenas batidas na porta, já sabia quem era mesmo antes do som ser feito.

"Entre, Dandara."

"Com licença, Enoque."

Dandara era uma mulher negra, alta, com um volumoso cabelo crespo e olhos pretos. Usava um vestido colorido e uma sandália simples, que enalteciam sua beleza de uma forma sutil. Inteligente e dedicada, a assistente de Enoque carregava alguns volumes da seção histórica com luvas de látex, e falava rapidamente.

"Queria saber do senhor sobre esses aqui. A transferência já foi aprovada, mas o senhor disse que queria dar uma olhada em todas as novas adições."

"Sim, sim, os exemplares da Enciclopédia de Diderot e D'Alambert, finalmente. Pode deixá-los em cima da mesa número dois. Obrigado." Disse o bibliotecário sem levantar os olhos de seu trabalho

Dandara sempre ficava um pouco desconfortável na presença de seu chefe. Ele raramente tirava os olhos do que estava fazendo, e ela poderia jurar por todos os Orixás que ele não saía da biblioteca. Era como se ele fosse uma peça da coleção permanente: sempre está ali e sempre esteve ali.

E nada a respeito dele ajudava a tirar essa impressão. A insistência em manter as janelas fechadas, ficando apenas com luzes artificiais, a numeração de cada peça do mobiliário da sala, a mania de escrever absolutamente tudo o que acontecia, a voz grossa, quase ríspida, com que ele falava, tudo aquilo deixava a imagem de um daqueles ricos excêntricos em filmes de terror na cabeça dela.

Não que o homem em si fosse feio, mas ele era definitivamente assustador, e intimidava com facilidade. Tinha quase dois metros de altura, cabelos amarelo-claros, quase brancos, que iam até seus ombros; óculos pincenê que faziam seus olhos cinzentos ficarem maiores; e um terno sempre bem passado, que variavam durante a semana entre branco, cinza, azul e xadrez. Ela tinha certeza absoluta que as roupas dele teletransportavam direto do cabide para o corpo, pois não havia nada fora do lugar, nenhum amassado, nenhuma dobra, nenhuma imperfeição. Um cara bonito, mas esquisito demais, mesmo para um homem branco.

"Sim, senhor." Disse Dandara baixinho, colocando os livros na mesa indicada, em ordem de tamanho.

"Dandara?"

"Sim, seu Enoque?"

Reprimindo um instinto de pular para trás quando percebeu que ele a olhava diretamente nos olhos, ela tentou parecer menos espantada.

Asas do RecomeçoWhere stories live. Discover now