II

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     Senti o peso das minhas pálpebras, quando tentei abrir meus olhos.
Do escuro ao borrão de luz em fração de segundos.

O clarão invadiu minha visão, me fazendo piscar rapidamente algumas vezes, até me acostumar com a luz amarelada.

Fiquei de repouso antes de receber meus familiares e amigos mais próximos. Eles sempre estavam ali. Acredite.
Nunca me abandonaram.

A cirurgia havia transcorrido com sucesso. Meu médico mencionou algo sobre uma possível rejeição, então eu teria que seguir tudo que ele havia descrito.

Pode acreditar, não foi nada fácil.
Eu não suportava a vida pós transplante, que incluía rígidas dietas e a proibição de muitas coisas que eu adorava beber, comer ou fazer.

Nessa fase da minha vida, tudo se resumia em fisioterapia atrás de fisioterapia. Mas meu rendimento estava além do esperado e meu organismo, aparentemente, estava aceitando muito bem o coração doado.

Não houve problemas após o transplante. O que já era um alívio, porque passar por aquele processo novamente, seria desgastante, tanto física, quanto psicologicamente.

Entretanto, comecei a notar sensações diferentes.
Coisas diversas começaram a acontecer.
Tinha algo definitivamente muito estranho comigo.

Eu não sabia explicar exatamente quando aconteceu, mas notei uma vontade imensa de comer pizza, a toda hora.

Comecei a desenvolver o gosto por comer algo que eu não comia por ser bailarina. O que mais me surpreendeu dos gostos, foi milho com sorvete.

Não poderia ser apenas sorvete de milho. Eu acabei gostando da forma como o sorvete derretia em minha boca, enquanto eu mordia de forma crocante os caroços de milho.
Era insanamente bom.

Até certo ponto, eu deixei as coisas acontecerem, mas comecei a ter sonhos com momentos que nunca vivi antes, era como se eu fosse outra pessoa. Como se eu estivesse no corpo de outra pessoa. Ouvia gargalhadas deliciosas que eu poderia ficar escutando a minha vida inteira.
Mas logo elas sumiam.

Quando eu acordava, esperava que algo viesse à minha memória, talvez para poder enxergar o rosto de quem eu estava vivendo, mas nada além de borrões.
Às vezes demorava um pouco para ter sonhos como esses. Às vezes surgiam diariamente.

No último sonho, aconteceu alguma coisa estranha. Eu podia sentir na pele a aflição da outra pessoa. Vozes alteradas. Talvez uma discussão.
Socos? Eu não sabia ao certo, não me lembrei ao acordar.

Mas tudo isso já estava me deixando extremamente assustada.

Meu médico mencionou que aquilo não era um problema. Talvez fosse simplesmente o estresse que me atingiu, depois do processo. Mas eu queria entender tudo o que estava acontecendo comigo.

Passei a pesquisar sobre tais diagnósticos e situações que ocorreram após uma cirurgia de transplante de órgãos.

Pelas buscas que fiz, haviam pacientes que adquiriram alguns gostos e preferências peculiares que o doador tinha, antes da doação.

Isso poderia explicar algumas coisas.
Depois da pesquisa, passei a ter uma imensurável vontade de conhecer meu doador.

Sim, eu queria saber sua história. Seus gostos.

Heartbeats | Conto NorminahOnde histórias criam vida. Descubra agora