Chapter 3- Anna Helsen Kyll

6 1 0
                                    


Primeiro dia de aula, mais um ano naquele inferno, realmente, não aguento mais ficar perto daquelas pessoas tóxicas. De forma irônica, eu sou tóxica pra mim mesma, me levando cada vez mais para baixo do poço, me afundando num mar chamado anorexia. Não sou "pró-ana", na verdade, tenho repúdio por pessoas que apresentam essa doença como dieta, como um estilo de vida. Qual o problema destas pessoas? Eu não sei. É horrível olhar pro espelho e ver um mar de banha,  no fundo, eu sei que não sou assim, eu sei que aquela não sou eu, mas o reflexo brinca muito comigo, ele literalmente me prega peças, fazendo com que eu odeie cada vez mais meu corpo. E, a cada dia que se passa, eu me odeio mais.
Me arrumei e fui pra escola, como todo ano meus amigos e eu fazíamos, fomos juntos tomar café da manhã e andar até a escola. Ótimo.. Eles nunca perceberam nada, nenhuma refeição que pulei, nenhum dia que recusava até um suco natural com açúcar. COM AÇUCAR. Já não basta o açúcar natural da fruta, ainda colocar mais coisas doces ali? Nope, muito obrigado.
Durante o café da manhã, apenas tomei um copo de café preto sem açúcar. Com o tempo, aprendi a apreciar o café assim, puro..Cada gotinha, até mesmo quando sentia aquele gosto amargo na boca. Ninguém perguntou nada , ninguém nunca pergunta. Como havia comido no dia anterior-duas fatias de maçã verde- não iria desmaiar nem sentir muita fraqueza, poderia continuar firme, vivendo o meu  normal. Sim, este é meu normal, ficar dias sem comer e depois comer meia maçã pra não desmaiar. Fazer o que, eu não escolhi me olhar no espelho e ver esse monstro.

Após a aula, tediosa e ridiculamente rotineira, voltei para casa e fui tomar um banho frio (depois do típico interrogatório da minha família). Meus pais não sabem do meu transtorno alimentar, e por mim nunca vão saber. É bom ser a filha perfeita, as vezes, na maior parte do tempo só é difícil suportar a pressão de sempre ter que tirar notas boas, ter o corpo "magrinho", um sorriso no rosto e falar que eu estou bem mesmo quando estou prestes a desmoronar. Fingir se tornou tão fácil, realmente, vocês não imaginam quão natural é dizer: "ah, eu já comi em casa" , "to sem fome, comi muito antes", "bobinho, claro que eu to bem, minha pressão deve ter baixado", "comi na escola", "jantei na Amanda".
Minha mãe fazia o jantar, meu pai assistia o jornal e eu me trancava no quarto, levava o jantar pra lá e fingia comer, as vezes jogando tudo no fundo do guarda-roupa. Escondendo em uma sacola e jogando no lixo no dia seguinte. As vezes, muito raramente, sentava na mesa e ficava enrolando, levando o garfo até a boca e depois  puxando algum assunto, cortando a comida em mínimos pedaços para fingir que comi. É horrível mas eu já me acostumei a essa vida terrível em que me meti, e tudo pelo que? Não é só uma questão visual, meu psicológico é todo fodido. Eu sou completamente fodida..

Fiquei algum tempo lá, no banheiro, olhando o meu espelho quebrado enquanto pensava em uma desculpa para dar aos meus pais. Não fiz nenhuma refeição em casa hoje e não estou no clima para ouvir mais um interrogatório sobre as aulas- devido ao fato de eles terem ficado me enchendo o saco por quase uma hora pra saber se já tinha começado com as avaliações. Bem breve respondi que só tivemos um trabalho de artes, mas tínhamos um projeto em dupla pra fazer amanhã e eu iria pra casa da Amanda, desligaríamos os celular e só ficaríamos nos estudos. Eles acreditam por que eu sou uma boa garota. A garotinha perfeita. Claro, isso tudo foi só uma desculpa para eu poder ir pra festa da amada do Luke, então não me importei muito. Já havia deixado umas roupas na mochila pra levar pra amanhã, então simplesmente depois do banho coloco meu pijama (blusas largas e um short daqueles curtinhos), minha pantufa dos monstros s.a e desço até a cozinha.

[Anna]- Hey.. o que tem pra almoçar?

Perguntei abrindo um leve sorrisinho e me escorando no balcão.

[Pietra- mãe da Anna]- Carne com molho de legumes. Você já comeu alguma coisa antes de chegar ou vai comer conosco?

[Anna]- Eu comi pastel com a May saindo da escola, e não me caiu nada bem. Não to com fome não. Mas valeu mãe, eu vou estudar. Sabe como é.. ensino médio. E eu peguei um antiácido do seu banheiro, o meu acabou.

Deixei ela falando com meu pai e fui até o meu quarto, escutando minha barriga roncar. Peguei minha garrafa d'água e tomei um pouco, pra ver se aquela sensação passava. Organizei a mochila e me sentei na cama, peguei meus fones e coloquei a música no máximo começando a estudar o conteúdo besta que minha professora de "história da música" havia passado. Eu amo música, com todas as minhas forças. As únicas pessoas que sabem que eu canto são o Samuca, a Ammy, a May e o Lukey. Não pretendo mostrar minha voz pra mais ninguém, não antes de deixar ela perfeita.

Guardei minhas coisas e coloquei o celular pra carregar, me desligando do mundo. Meus fones continuavam com a música no máximo (e como eram fones via bluetooth fui até a cozinha e enchi minha garrafa. Peguei um pacote de bolacha salgada e avisei que essa ia ser a minha janta, logo então voltei pro quarto e coloquei o biscoito dentro da mochila, pegando meu refúgio: o meu caderno de músicas, onde guardo todas as canções que já escrevi na vida. Comecei a cantarolar, deixando anotadas as melodias e batidas pra cada estrofe.

[Anna]:
- e mais uma vez...
te pego olhando pra mim.
até estranhei..
já que você sabe que seu amor é meu fim.

Suspirei baixo já que não conseguia achar nada que combinasse. Essa letra mexe muito comigo e eu nem sei explicar o motivo. Na verdade eu sei sim, ele sabe o quanto me matou. Eu passei por um relacionamento totalmente abusivo algum tempo atrás, é claro, tudo escondido dos meus pais. Eu terminei tudo quando ele me bateu. Ele me bateu tanto que eu..não sei explicar. O foda é que o que doeu mais não foi a dor física e sim o jeito que ele partiu meu coração, para sempre. Não sei explicar o por que me culpo com tudo que aconteceu. Eu só sei que.. isso me mata aos poucos. Depois dessa lembrança horrível, nesse exato momento, fui deitar enquanto chorava. As lágrimas que percorriam pelo meu rosto simplesmente.. me fizeram dormir e ter pesadelos com aquele rosto. Aquele maldito rosto.

The TruthOnde histórias criam vida. Descubra agora