Três vezes por semana, os presos tinham direito a assistir TV por duas horas e meia, evento que eles apelidaram de "hora do recreio". Nesse período, assistiam ao noticiário regional e a um programa que lidava com problemas familiares fictícios ilustrados por péssimos atores fingindo que aquilo era real.
- Acredita que essa merda de formato de programa faz sucesso no mundo inteiro? - Charles indagou o colega de cela, sentado ao seu lado.
- Até que eu gosto. Lembra um pouco a minha família.
- Lembra a família de qualquer um, seu idiota! Os casos apresentados são genéricos e rasos. Qualquer um pode se identificar com isso. Aliás, é tudo uma farsa!
- Pelo menos me faz dar boas risadas. Olha aquela mulher! Tacou o sapato na cabeça do marido porque ele traiu ela.
- Você está ciente de que na verdade ele não a traiu porque eles são atores e não são casados, né? Aliás, atores de merda!
- ...
No jornal, logo após a coluna de esportes sempre era apresentado um breve resumo das opções de entretenimento pra semana. O destaque da semana era a companhia de balé "Liberté", que estava na cidade com a montagem de um clássico, e apresentava a bailarina Katarina Mendes, a mais nova revelação do mundo da dança, como artista principal.
Charles lembrava muito bem daquela morena. Durante três anos foram vizinhos de apartamento no mesmo prédio. As paredes finas permitiam que ele ouvisse muita coisa, principalmente as brigas do pai com a moça. Ela levava jeito pra dança, e queria seguir carreira, e não fazia ideia de que estava no limiar de uma oportunidade de ouro: recebeu uma notificação de uma bolsa de estudos integral na melhor escola de balé do país. Na carta, eles a descreviam como uma "jovem promissora com um imenso potencial ainda não explorado".
Seu pai, um pianista frustrado por nunca ter sido reconhecido, ficava dividido entre inveja e ciúmes. Desde que a esposa morrera, há cerca de um ano, ele tentava diariamente fiscalizar cada passo da filha e fazia questão de tentar desmotiva-la. Escondeu a carta da menina por quase um mês, tentando sabotar a sua chance. Quando ela descobriu, a briga foi feia.
- Você não tem o direito de fazer isso comigo!
- Eu posso fazer o que eu quiser! Sou seu pai e você mora sob o meu teto!
- Isso é injusto! Você quer descontar o seu fracasso em mim!
No fundo o que ele queria era que ninguém olhasse pra menina. Nos seus recém-comemorados 15 anos, ela já possuía corpo de mulher adulta, esculpido e ainda mais evidenciado pelos resultados que a dança trazia. Enquanto ela permanecesse sem perspectivas e ofuscada pelo uniforme de chapeira numa lanchonete, trabalhando informalmente por meio período pra pagar a própria escolinha local de balé, ela não seria vista nem desejada, e ainda precisaria dele.
- Teria sido melhor se VOCÊ tivesse morrido ao invés da mamãe! Ela sim me apoiaria!
Esse foi o estopim. Ensandecido, o homem esmurrou a filha, até que ele próprio ficasse cansado de bater, e a menina desistisse de se defender. Ainda pior do que as dores dos tapas, socos e pontapés, foi a dor que ela sentiu na alma quando ele gritou:
- Na próxima eu quebro suas pernas! Assim você nunca mais sobe num tablado.
Pra Charles, isso foi a gota d'água. Sentiu o chamado subir pela coluna.
No dia seguinte, ao chegar em casa, ainda com a pele engordurada do trabalho, triste e sem esperanças sobre seu sonho, usando óculos escuros pra disfarçar o olho roxo, e camadas de maquiagem pra evitar perguntas constrangedoras, a menina estranhou a casa silenciosa demais.
Olhou para o piano na sala. A carta de admissão estava sobre o teclado. Sentou e percebeu que junto a ela havia um bilhete grampeado, com a mensagem impressa: "Nunca mais permita que seu brilho seja ofuscado pela sombra dos outros. Deixa a bailarina dançar!".
Por um breve momento ela chegou a imaginar que o pai havia se arrependido. Esse pensamento desapareceu assim que ela percebeu o sangue escorrendo entre as teclas.
Encontrar o corpo do pai dentro do piano foi um misto de susto e alívio. As mãos dele haviam sido esmigalhadas. Ela não fazia ideia de que ele foi forçado a tentar tocar piano, mesmo com todos os dedos quebrados, durante quase uma hora, pra que sentisse na pele o desespero que a filha sentiu mediante a ameaça de ter as pernas quebradas.
Obviamente, a primeira coisa que ela fez foi se livrar do bilhete, e só depois disso ela ligou pra polícia.
Poderia ter sido mera sorte ainda restarem dois dias até o fim do prazo de matrículas na nova escola de dança, mas não foi. Charles havia entrado em contato com a secretaria pra conseguir a informação. Ele até gostaria de ter tido mais tempo pra ter sido mais criativo e cruel com o pianista, mas ele sabia que a menina precisava estar livre do pai com certa urgência.
A bolsa de estudos incluía alojamento e ajuda de custo. Nem ela e nem a Polícia nunca fizeram ideia de quem matou o pianista. Pra Polícia esse era o trabalho de um maníaco, já que não encontraram sequer uma impressão digital. Pra ela, se tratava de livramento divino realizado pelo seu "anjo da morte". É curioso como o significado de milagre e de tragédia podem se confundir, dependendo do ponto de vista.
Katarina nunca chorou a morte do pai. Ela estava feliz demais ascendendo à fama que só a liberdade pôde proporcionar.
Charles assistia ao anúncio no telejornal com um sorriso cínico no canto da boca, até que suspirou, olhou pro lado, e pela primeira vez demonstrou algum esboço de felicidade ao balbuciar pro presidiário ao lado:
- Se ela soubesse que fui eu que dei asas pra ela voar, beijaria o meu rabo de tanta gratidão.
- O que?
- Deixa quieto.
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Flagelo
General FictionPro mundo ele era um monstro sanguinário. Mas não sabiam que ele era incapaz de fazer mal a uma mosca se ela fosse inocente. Charles podia ser estranho e pavio curto, mas não era mau. Ele apenas era muito bom em castigar pessoas más, por mais que is...