A CHEGADA

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***Quando o cara mais fodido do mundo vai preso, o mundo fica ainda mais fodido do que ele.***

- Você vai morrer aqui dentro!

Fila do bandejão. O recém-chegado Charles tentava em vão apenas seguir com sua nova vida carcerária, almoçar e depois se preparar pro inevitável tédio da cadeia, quando ouviu essa provocação vinda da mesa de trás. Ele havia acabado de guardar seu jogo de cama na apertada cela e decidira aproveitar o fim do horário de almoço. Só que a fome o deixava especialmente ainda mais impaciente. Ele tinha que retrucar. Coçou a nuca e se virou:

- Você diz isso com essa cara? Eu matei onze caras com uma faca de pão. E você, seu merdinha? Você acha que eu tô puto de vir pra cá? Não, não, camarada. Tá muito enganado: Eu tô é bem satisfeito!

Surpreendeu-se ao perceber que se tratava de um velho com óculos esquisitos e bregas de nerd, aparentemente nada ameaçador, além de não demonstrar muita segurança a respeito do que estava dizendo. Isso o fez achar ainda mais graça na expressão de maníaco que resolveu devolver gratuitamente.

- Que foi? O gato comeu sua língua? Deve ter comido seu cabelo junto também!

O desajeitado prisioneiro aparentou ainda mais ridículo naquele uniforme laranja, com uma perna dos óculos colada com fita adesiva, e sua careca mal disfarçada com o resto de cabelo penteado de um lado pro outro, o que parecia ser uma tentativa nada eficaz de disfarce da idade. Ele estava corado de medo e vergonha por ter ficado sem resposta. Mas o que ele podia fazer? Agora o novato parecia praticamente outra pessoa, debruçado sobre sua mesa e falando baixo bem ao lado do seu ouvido:

- Agora some da porra da minha vista porque tá me dando vontade de Matar gente babaca! Essa é a vida te dando mais uma chance por hoje, meu chapa. Comigo aconteceu o mesmo e eu comecei a varrer uns monstros da face da terra. O que você vai fazer com a sua?

Pro mundo ele era um monstro sanguinário. Mas não sabiam que ele era incapaz de fazer mal a uma mosca se ela fosse inocente. Charles podia ser estranho e pavio curto, mas não era mau. Ele apenas era muito bom em castigar pessoas más, por mais que isso fosse visto com maus olhos pela sociedade, e um grande exemplo disso foi o que aconteceu com Robert.

Robert era um contador que prestava serviços a uma grande fábrica de esponjas - isso durante o dia, porque suas noites eram dedicadas a tornar um inferno a vida de sua filha Sally. Ele a molestava há seis anos, desde que a pobre menina tinha apenas nove. O homem foi encontrado morto em seu escritório, empalado com uma barra de ferro de três polegadas. Dentro do seu estômago descobriram um verdadeiro show de horrores: uma dúzia de esponjas, uma boneca Barbie Contadora, e diversas fotos dele abusando da pobre criança (por incrível que pareça, não havia uma gota de sangue ao redor da cena do crime). Foi a primeira vez que uma das "obras" de Charles se tornou manchete de um periódico de grande circulação. Depois que esse assassinato veio à tona, surgiram quatro denúncias de abusos contra o contador, todas vindo de colegas de infância, inclusive de uma prima. Charles dizia que gostava de fazer as pessoas pensarem a respeito dessas classificações tão rasas e distantes: "a diferença entre ser vítima ou réu está justamente no que descobriram sobre você". Ele não conseguia parar de pensar que queria ter tido a chance de passar algum tempo com a filha do contador. Ela seria um excelente braço direito: dá pra perceber quanto ódio uma pessoa guarda dentro de si apenas olhando dentro dos seus olhos durante alguns desconfortáveis segundos. Quando o ódio é nobre, sempre resulta de um motivo justo. E a menina tinha o demônio dentro de si, só esperando pra sair e descontar no mundo tudo que havia passado.

O desespero do penitenciário zombeteiro piorou ainda mais quando o novato, ainda com a bandeja nas mãos, se agachou e sussurrou ainda mais baixo no seu ouvido:

- Eu sou a porra do agente de limpeza urbana do mundo. Eu acabo com o pior lixo que a humanidade não consegue reciclar: gente ruim demais!

Charles foi preso por mera ganância, ou pelo que ele gosta de nomear como seu senso de justiça, foi pego pelo "chamado". Durante uma fuga, pra tentar despistar os detetives, ele ziguezagueava entre ruelas aleatórias sem muita noção de como funcionava o tráfego de carros pela região em que estava. Ele quase havia sido encurralado e teve que entrar num bairro pobre, localizado no subúrbio da cidade vizinha à sua. Abandonou o carro roubado e resolveu entrar no primeiro terreno aberto que viu. Pra seu azar, viu ali numa casa sem muitas portas algo que não imaginava encontrar: um chamado pras suas habilidades. Pro seu azar. Pra sorte da pobre coitada daquela esposa. Pra sorte dos detetives. E pro azar, pra muito azar daquele covarde que espancava a inofensiva companheira no exato momento em que Charles tentava fugir passando por ali.

Madeleine, a tal esposa, era uma pobre coitada, parecia muda a infeliz. Tinha boca e não falava, e por pouco ela quase teve um futuro diferente, mas na adolescência teve medo da sociedade e parou de se agarrar escondida com Sally, sua amiga de infância. Ela viu naquele gordinho loiro a chance de ser feliz como estava subliminarmente escrito: com uma rola entrando e apanhando de vara. Pobrezinha, levava pau em todos os sentidos. E odiava isso. A verdade é que a sociedade estava pouco se lixando se ela apanhava ou não...o que importava, de forma geral, é que ela fosse uma mulher de família, heterossexual, e que não gozasse, já que no fundo ela gostava de mulheres. Ela não sabia se agradecia ou se praguejava a Deus por ser estéril, uma vez que na maioria das vezes essa era a desculpa que ele usava pra espancar sua "mulher inútil com a boceta estragada", como ele a chamava.

Uma semana antes, ela até chegou a escrever uma carta pra Sally contando um pouco de sua vida e dizendo que sentia saudade de quando eram "felizes se amando". O carteiro não achou a carta, atrasou-se naquele dia, e graças a isso, o marido acabou encontrando a correspondência ainda na caixa de correios. Desse dia em diante, os espancamentos passaram a ser motivados pelo comportamento socialmente imoral e abominável da pobre mulher, e pra ele, a infertilidade dela era uma punição de Deus todo poderoso pra que o mundo não ficasse infestado de "sapatonas imundas que ficam se esfregando pelos cantos da cidade". Pra sorte de Charles, e pro azar do agressor, durante a fuga, a carta ainda estava ali, em cima da escrivaninha, manchada pelo sangue da pobre coitada, ao lado de uma cinta de couro e sobre uma bíblia aberta, que mostrava um trecho de levíticos, a munição distorcida que ele precisava pro seu ódio. Curioso o fato de como a percepção de Charles é extremamente aguçada pra certos detalhes: ele sempre encontra a peça-chave que acaba fornecendo a cereja do bolo pros seus assassinatos, e foi o que aconteceu com aquela folha de papel. Pouco mais de uma hora depois, aquela mesma cinta de couro agora estaria enrolada no pescoço roxo e quebrado do marido, e de sua boca pendia a ponta de seu pênis, recém-retirado de onde agora havia apenas uma vala propositalmente parecida com uma vagina. Em seu peito, rasgado à facas, haviam os dizeres: "espancava minha esposa porque temia que ela tivesse um pau maior do que o meu.". Voilá!

É difícil imaginar como Charles havia conseguido elaborar tal obra de arte em tão pouco tempo, durante uma fuga. Como os vizinhos estavam tão acostumados aos barulhos padrão do quebra-quebra diário que vinha no kit de marido moralista inseguro, ninguém sequer desconfiou de algo. Se não fosse pelo fato da dupla de detetives já estarem na sua cola, talvez ele não tivesse sido pego. Tiveram a chance de contemplar em primeira mão uma das suas maiores obras de arte. Ainda fresca, recém-criada.

- Puta que pariu, o cara se cagou todo! Tem Merda pra todo lado!

- Eles sempre se cagam. Mas olhando pra esse aí, a Merda seria o menor dos seus problemas.

No fundo eles até que gostavam do que o cara fazia. Afinal, quem nunca sonhou em combater malfeitores com as próprias mãos quando era criança? Quem nunca quis fazer aquilo que a Polícia não dava cabo? Aí você cresce e agora É parte dessa polícia, preso a burocracias. Não fica difícil imaginar o conflito de consciência que se formava na cabeça daqueles dois detetives. Mas lei é lei, e o dinheiro do contribuinte tem que ir pra algo além de café e pastéis.

A captura ocorreu por um pouco de luxúria dele e por sorte da Polícia, pois poucas horas depois, ao se ver encurralado, a espingarda calibre 12 que ele havia arranjado sobre o balcão de um bar fechado, apontada pra própria boca,resolveu falhar. Isso, é claro, além dele próprio ter sentido que por alguma razão desconhecida deveria continuar vivo. Puxou o gatilho de novo, mas agora já havia tido tempo pra pensar melhor. No desespero, desviou a arma pouco antes do disparo, que passou de raspão, deixando um risco no seu ombro. O susto o fez tropeçar, cair e bater a cabeça. Quando acordou, já estava algemado, dentro de um hospital, com os dois detetives na porta, espreitando-o como um troféu de caça.    

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