Não te dou o direito

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     Os olhos da pequena criança se abriram para encontrar uma nova realidade, diferente do que estava acostumada em vários aspectos e tão igual em outros, acabou sorrindo ante a possibilidade de conhecer coisas novas. Aquele sorriso sempre acompanhado por tons de tristeza perceptível apenas a quem olhasse com atenção. 
       Brancas e opacas paredes cercavam o quarto composto por uma cama macia onde Vallerie repousava, dedinhos passearam pelo lençol suave. Tão diferente daquele orfanato, um pequeno guarda roupa em madeira escura assim como a mesa com duas cadeiras junto a janela, e o armário mediano perto da porta. Nada além de madeira e branco preenchiam sua visão.
       Era lindo e muito mais confortável do que o quarto onde dormia junto a mais quatro meninas no orfanato, mas tão adulto e novamente nada daquilo demonstrava o menor sinal que pertencia a uma criança. Sem cores ou sequer um brinquedo. 
      Se fosse pensar na realidade mais parecia um quarto reservado a uma visita indesejada, não que fosse alguma novidade para a menina agora avançando até o guarda roupa. Sempre fora indesejada de qualquer forma. Sentou na cama e sorriu quando seu corpo pulou na maciez do colchão.
     A curiosidade infantil nunca lhe abandonará, desejava conhecer cada canto daquele lugar. A única cama indicava para a menina inteligente que talvez, só talvez seu desejo houvesse se tornado real. Sorriu doce ao imaginar poder ver sua mamãe. Seus olhinhos amavam observar a progenitora.
        Pequenas mãos calejadas com alguns arranhões na parte superior dos dedos denunciando a última vez que levará uma pisada de Clarice quando limpava o chão, abriram com cuidado o guarda roupa.       Haviam roupas limpas em tons de azul marinho, preto, cinza e verde, indo de camisas a casacos e calças. Estavam macias ao toque, sorriu ao trazer uma delas junto ao rosto, tinha cheiro de rosas. Nem eram infantis mas a menina gostou. Vallerie mal tivera mais de quatro peças de roupa disponíveis fazendo os invernos doloridos pelo frio penetrando por seus ossos.
       O que parecia ser um papel lhe chamou a atenção, estava escondido em baixo das roupas, só um pouquinho visível, inclinou a cabeça para o lado e puxou com cuidado encontrando uma foto com aparência gasta. Como se alguém dormisse junto a ela por várias noites. Um brilho nasceu naquele chocolate fitando amorosamente a imagem.
        A foto lhe pertencia, razão pela qual estava tão gasta. Na foto os braços de Regina circundavam seu pescoço enquanto a mesma a abraçava por trás.  Os olhos não pareciam felizes com isso mas ainda assim, era melhor que nada. Tinha o poder de fazer os olhos chocolate brilharem ao sorrir para a foto de quando a morena fora eleita a prefeita. Jamais esteve tão perto da progenitora antes.
      Por mais real que parecesse a pequena criança sabia não ser uma imagem verdadeira. Possuía todas suas memórias reais, nunca fora abraçada muito menos por sua mãe. Se o fosse não esqueceria. Duvidava ser da vontade de Regina qualquer aproximação.
         Mesmo assim depositou a foto abaixo do travesseiro, gostaria de admirar a noite. Abriu a porta e com passos cuidadosos percorreu o corredor até alcançar a escada. Deixou os dedos tocando as paredes de forma infantil, sorrindo com as cócegas nas digitais.     
           Experimentou deixar seus pés correrem livremente escada a baixo pulando em alguns degraus, um riso baixo e divertido escapava por lábios ainda feridos sempre que sentia o frio na barriga, como sua imaginação infantil sonhou em poder correr como as outras crianças. Ignoraria qualquer dor para fazer novamente.   
          Um último pulo e estava na parte debaixo da casa. Rindo girava de olhos abertos capturando cada detalhe da mansão tão ricamente decorada de forma que cada detalhe lembrasse sua mãe. Imponente, lindo e indescritível.
         Agarrou uma foto de Regina como se fosse um tesouro, eram poucas as fotos espalhadas na sala, todas eternizando a mulher agora com um cabelo curto sendo delicadamente desenhado pelas digitais da menina. Olhinhos  chocolate brilhando entre profundo amor e doloroso desamparo.
       Estava com tanta fome que deixou os pés encontrarem o que parecia ser uma cozinha. Encontrou o que parecia um armário só que diferente, curiosa puxou a porta com um pouco de força até a mesma ceder desequilibrando o corpo magro e pequeno.
        Um raro riso infantil tomou conta da cozinha com o friozinho gostoso tocando a face da criança surpresa. Tinha tantas comidas que nem conhecia, pegou uma maçã mordendo com prazer. Comeu várias. A paixão pela fruta definitivamente estava no sangue, única explicação para a menina preferir a fruta aos outros alimentos.   
        Tudo na mansão cheirava a maçã, enchendo de prazer a menina sempre que o aroma era inalado, como imaginava ser o tão sonhado abraço de sua mãe. Provavelmente seria o mais próximo do carinho que receberia. Fazia calor nessa nova terra. Uma linha de suor desenhou a lateral da face machucada. Ardendo num arranhão localizado junto ao pescoço. 
         Ignorando a sensação colocou algumas maçãs na mesa, com cuidado firmou nas mãos um recipiente de vidro contendo suco de laranja. O material frio aliviando aquele calor intenso característico do Maine.
        Deixou seus dedos experimentarem a textura fria do mármore, e todos os objetos desconhecidos ganhavam um olhar divertido e curioso. Não saberia dizer de onde veio, mas essa é uma mania que não conseguia largar. Amava tocar qualquer coisa ao alcance.
          Subindo numa cadeira achou nos armários alguns copos de vidro que pegou com cuidado. A última coisa planejada seria quebrar algo. Voltou a procurar quando viu pacotes de bolachas e também colocou na mesa.
        - Tafé pra limenta a mamãe e ela fitar forti. - Vallerie pensava alto. A voz poderia derreter gelo de tão amorosa.
         Com o tempo e toda a solidão que a envolvia desenvolveu o hábito de falar consigo mesma, não que tenha enlouquecido, mas gostava de poder falar sem ouvir grosserias ou apanhar por falar errado. Já era ruim o bastante ser indesejada junto a certeza de não pertencer a nenhum lugar. Como se houvesse nascido sem o direito de continuar existindo.
         Voltou a subir na cadeira onde observou o objeto em inox que parecia sair da parede.  Tocou a parte superior rindo ao sentir gotas de água molhando suas mãos e respingando a face da menina, era tão divertido para os olhos chocolate ver o líquido absurdamente transparente. 
        Batia na água rindo quando achou um líquido verde colocou na mão dando pulos animada sobre a cadeira quando começou a formar muita espuma. 
        Regina abriu os olhos para uma terra sem magia, dando seu melhor sorriso vitorioso. Conferiu cada detalhe do quarto que estava do seu agrado. Saindo da cama curiosa como estava foi até seu closet vendo quão grande era, sentindo com os dedos a textura diferenciada das roupas visivelmente caras, emanando um aroma de rosas, as araras cheias de vestidos, saias, ternos entre outras. Estantes ostentavam acessórios e maquiagem, um espelho oval enorme de corpo inteiro ocupava a parede. Saiu de lá para entrar na segunda porta no quarto. 
        Um momento junto a luxuosa banheira e  estava pronta para mais um dia, o primeiro de muitos que teria nessa cidade, tocava cada objeto do local se divertindo, numa mania adquirida desde seus mais tenros anos como uma criança, reservada apenas para quando estava sozinha. 
         De volta ao quarto curiosa pegou nas mãos uma foto saindo do travesseiro, virada em direção ao colchão, congelou observando a imagem dela abraçando pelo pescoço uma menina posicionada na sua frente. Choque assumindo as linhas faciais logo sendo substituído por intenso ódio.
        Não era possível, pensava ao observar atentamente a criança, traços idênticos aos seus eternizavam um sorriso de olhos brilhantes, embora com quase imperceptíveis de tristeza, aparentemente a foto fora tirada no dia que ganhará a eleição. Se estivesse certa, a criança teria seus quatro anos.
       Percebeu indignada que sua maldição havia feito mais do que simplesmente trazer todos da floresta encantada para uma terra sem magia, apagando as lembranças de quase todos, havia lhe condenado a conviver com o fruto de todos aqueles anos. A criança que desejava jamais ter tido.
        Vallerie era a prova viva de quão reais os pesadelos que ainda roubam seu sono eram. Só podia ser uma brincadeira de muito mal gosto. Como conviver junto a alguém que desprezava, para quem reservou toda intensidade de sua ira.
        O que dera tão errado, a ponto de mudar o que já estava definido para seu final feliz, e agora nem na realidade poderia se refugiar de toda a dor causada por sua mãe junto ao pai da aberração provavelmente morando sobre seu teto.
       Depositou sem cuidado a foto virada para baixo na cômoda antes de praticamente voar através da porta maciça de madeira nobre e escura. Parecia flutuar tão rápido desceu as escadas parando junto a sala, sem se dar ao trabalho de observar sua nova morada, podia ouvir um riso gostoso e infantil vindo da cozinha confirmando as suspeitas da mulher furiosa.
        Em passos lentos Regina foi se aproximando, os olhos chocolate fitavam a pequena criança como se ela fosse um monstro asqueroso, seu coração detestava a presença da menina em sua casa. Respirar tornou se difícil diante da filha que jamais quis ter. Razão pela qual mandou a para longe.
        Por mais irracional que fosse não podia deter o sentimento, só de lembrar o sangue que estava correndo pelas veias da criança o estômago revirava. Sentia vontade de mandar levarem na para longe outra vez. Nada além de raiva flutuava sobre sua mente.
       Sentindo a presença que aprenderá a amar a pequena menina se virou fitando pela primeira vez de perto os olhos idênticos aos seus, ficara nervosa ao constatar que neles não habitava nem um pingo da adoração sendo derramada por ela. Amor colidiu com ódio, seu cuidado frente ao desprezo cruel.
         Vallerie corou constrangida sem saher como agir diante de tamanha repulsa, não esperava ser celebrada mas doía ver tanto desprezo sem que houvesse feito nada além de existir sobre o mesmo teto dela para merecê lo. Novamente a sensação de não pertencer a lugar algum deixando a desconfortável.
       Acabou colocando as mãos atrás do corpo sorrindo de forma tímida fechou a torneira e desceu da cadeira se aproximando do alvo de seu amor. Corajosamente a menina ergueu a cabeça para olhar a mulher, mesmo constrangida pelo olhar de asco recebido não queria sua mãe pensando que a estava lhe ignorando.
       Se Regina olhasse de verdade para a criança notaria que não tinha nada a ver com seu pai, preferia ser machucada a lhe causar alguma dor. Havia tanta adoração naqueles olhos, amor puro pela mulher quebrada a sua frente.
        Aquilo machucou tanto, estar acostumada a tratamento assim não fazia doer menos. Sentiu se ainda mais pequena e insignificante. E nenhuma palavra fora dita ainda. As vezes, olhares feriam mais que adagas afiadas. 
        Deslocada, novamente questionava se haveria algum lugar para si, duvidava que poderia ser amada, embora tivesse tanta esperança de achar um lugar onde pudesse existir sem incomodar ninguém.
        A garota era corajosa o bastante para quebrar o silêncio, embora não soubesse como ou mesmo tenha pensado nas palavras que escorreram por seus lábios, então se aproximou com cautela.
       - Oi. Mi chamo Vallerie. - não era seu tom mais confiante mas estava se esforçando, sorriu sem jeito diante do olhar gélido. - e voxê sabie queim sou. - não sabia se era melhor falar ou ficar quieta mas todo aquele silêncio tava incomodando a criança. - tlam bunita assim de petinho. ops. - colocou a mão na boca quando percebeu que falou em voz alta. Olhinhos chocolate arregalaram se.
       Se pelo menos dessa vez Regina fosse sincera consigo mesma admitiria que Vallerie Mills estava muito fofa com uma carinha de quem foi pega aprontando, as bochechas rosadas e um brilho nos olhos capaz de causar diabetes de tão doce e era todo dirigido a ela.
        Mas Regina apenas carregou com desprezo e frieza seu olhar arqueando uma sobrancelha, os lábios juntos em desgosto para a menina. Seu tom era tão cortante fazendo que cada palavra parecesse com adagas especialmente afiadas.
        - Infelizmente já que está aqui na minha frente não posso esquecer o maior erro que permiti sair de dentro de mim. - seus passos lhe aproximaram da criança com menos de um metro de altura, intimidando Vallerie. - Já que não tenho escolha vou deixar algumas coisas bem claras entre nós. - seu rosto tão próximo que o nariz ficou a altura do seu rosto.
        Os olhos lhe fuzilando junto a aproximação quase agressiva fazendo com que Vallerie desejasse desaparecer mas era uma menina forte e corajosamente ergueu a cabeça antes de falar.
       - Eu fiz tafé pla voxê mamãe. Fitar forti. - mesmo com medo sua voz não falhou embora seu corpo tivesse estremecido um pouco.
         Por mais que se negasse a ver, Vallerie mostrava a cada gesto quanto pertencia a Regina. A criança acreditava que precisava se posicionar até conseguir uma chance de conversar com sua mãe sem tanta agressividade.
         Pela primeira vez sentira a mão de Regina em seu pescoço apertando firme mas sem machucar, nem precisaria diante da dor que tanto ódio dirigido a ela causava, uma surra não doeria tanto assim. De surras entendia tanto.
       Só quem realmente ama alguém sem razão nem condição alguma pode entender quão frágil esse amor te torna a qualquer ação dessa pessoa, como um olhar de desprezo lhe dá a sensação de que a pessoa esmaga seu coração com a mão sem dó ou piedade. Nem tinha idade e já sabia como amar sozinha era quase um suicidio.
     - Não me importo se você saiu de dentro de mim, - pontuou cada palavra, certificando se de ser compreendida. Seu olhar conectado ao da menina. - eu nunca quis ter você, não quis acompanhar seus passos, nem segurar em meus braços uma única vez, nem me importei em amamentar ou em conversar contigo e sabe o por que? Porque não sou sua mãe! - crueldade nadava nos olhos chocolate sem piedade para a menina trêmula segurada violentamente por seus dedos.
    - Eu nem quero ser, nem mesmo creia que estar aqui vai me fazer te amar. Você não merece meu amor. Nem qualquer sentimento bom vindo de mim. EU. Não te dou o direito de me chamar assim. - foi falando cada palavra de forma cruel e pontuada.
      Sua mão soltou grosseiramente Vallerie que se desequilibrou e quase caiu sentindo o corte causado pelas palavras outrora ouvidas de outras formas por pessoas diferentes pulsar sangrando lhe na alma como nunca antes, palavras doem mais quando vem de quem amamos mais. Arrancando qualquer alívio por estar longe daquele orfanato.
     - Quero que fique bem claro que não quero você aqui. Eu não escolhi ser sua mãe. Eu munca quis você, mas as condições não me permitem escolher. Ter sua presença aqui esta longe de ser desejada. Se souber o que é bom para si mesma. Fique longe de mim. E nunca mais ouse me chamar de mãe.  Não tenho filhos. - com isso virou as costas raivosa e deixou a cozinha pisando duro pelas escadas. 
        Sem notar a lágrima solitária escorregando pela bochecha esquerda de Vallerie, olhos chocolate num mar de tristeza recusaram se a lhe perder de vista até que subisse as escadas. Como quem admira algum sonho impossível. As palavras tiveram o poder de quebrar ainda mais a menina já tão ferida.
       - Eu sintu tantlo mamãe, plometo qui naum foi por queler, espelo qui possa mi disculpar um dia. - a voz não passara de um fraco sussurro desolado.
        Num suspiro dolorido deixou se escorregar pela parede da cozinha abraçando as pernas na vã tentativa de parar o sangramento dentro de si. Nada poderia aplacar aquela avalanche de dor.
        Era uma criança e se sentia tão suja, nem as lágrimas grossas pareciam tirar toda aquela imundice. Imaginava ser absurdamente indigna do amor materno que desejava tanto mas pensava que jamais seria seu.

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⏰ Última atualização: Jun 19, 2018 ⏰

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