1ª Lembrança - Olhos

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Ano 2084, 23 de abril

Já não sabia se era certo afirmar hipérbole ao comparar seu choro com a chuva que escorria à fora, era tão deprimente a ver naquele estado, acomodada com o abraço das paredes, sentada no chão frio de madeira -Ana, o que houve dessa vez?- Era mais um longo dia de conversas sobre o quão o mundo era cruel, sobre o quão intolerante ele era com relação a mínima diferença exposta, seja uma cor de um cabelo ou uma orientação sexual diferente do "padrão"; porém mesmo sem ganhar uma flor todos nós vamos para a linha de fogo, simplesmente por que ficar calado dói mais do que todas as balas que vão atirar.

Me chamo Kuraline, tenho 19 anos, e levo uma vida perfeita, tenho amigos, amor dentro de casa, estudo em uma ótima faculdade, pais maravilhosos e uma irmã que com certeza não pensa a mesma coisa da própria vida... Ana tem 17 anos e se descobriu lésbica aos 14 anos, eu fui a primeira pessoa que ela contou, e depois desse dia nos aproximamos ainda mais, ela era tão confusa, tinha muitas dúvidas sobre si, mas nada que uns bons meses não resolvessem. Desde esse dia estabelecemos um laço mais forte do que o de irmãs, eu recebia cada sorriso dela com uma vitória, mas cada lágrima como um corte fundo entre os dedos.

A escola deveria ser como uma segunda casa, deveria acolher cada um igualmente, sem a mínima diferenciação, mas não era bem isso que acontecia, na verdade a escola, para Ana, virou de certa forma à frente do campo de batalha, fazendo com que o único local de descanso seria a sua própria casa... pelo menos até semana passada quando falou para os nossos pais que era lésbica; eu via em seu rosto raiva por todas as brigas que já houveram no decorrer desses dias, mas seus olhos não negavam a abissal tristeza que lhe invadia. Ela já não sentia-se confortável em nenhum lugar a não ser no canto daquele quarto, agachada, conversando comigo.

-Eu não escolhi, eu não escolhi essa merda de vida, eu simplesmente não acordo todo dia com vontade de sofrer...- Ana falava soluçando

Eu tentava acima de tudo fazê-la ignorar todas as brutas palavras que ouvia e transformar toda sua tristeza e raiva em determinação para levantar-se daquele fosso que ela mesma cavou, contudo essa tarefa se tornara mais difícil após ser anunciado na TV e via internet o nomeado Processo degradê.

Degradê foi o nome dado ao processo que objetivava separar a população em duas partes, todas as pessoas reconhecidas pelo padrão cis heterossexuais viveriam em constante vigilância porém estariam "livres" para viver normalmente, e todas as pessoas a diferir desse padrão seriam separadas da população e levadas para uma enorme área, denominada vale, cercada por altos muros de concreto que mais pareciam prédios sem janelas.

A seleção já estava em grande parte determinada, pois ao longo do governo foram feitas inúmeras investigações, a população estava sendo observada 24 horas sem ao menos saber, mas agora era tarde para iniciar uma revolução, o governo se tornara autoritário, comportava bastante poder e o povo? Ahh, o povo tinha medo, ninguém iria mover um dedo para tentar mudar a situação, o processo estava feito e quem fosse destemido o suficiente para sair do ritmo da música era morto.

-Kuraline, no quê está pensando?- Ana perguntava com a voz arrastada.

Não houve resposta.

-Kuraline? Por que não falas?

Eu já não conseguia olhar para Ana e não pensar que em poucas horas o processo iria iniciar e jamais a veria novamente, pensar que esse era o nosso último encontro e a última vez que contemplaria aqueles olhos, aqueles lindos olhos.

-Estou pensando em você Ana, pensando como vai ser daqui pra frente, como vou suportar não te ter comigo...

No quarto reinava o silêncio absoluto cortado apenas pelo barulho da chuva batendo na janela e pelo gemido choroso de Ana.

-Seus olhos são lindos até chorando minha irmã... Lembra daquele dia? Fazem mais ou menos 3 anos, você chorava como hoje, eu fui a única que lhe entendeu, você era tão confusa, se culpava por tudo, e ainda se via como um erro, como algo que não devesse existir -Kuraline eu...- mas eu segurei suas mãos, olhei nesses mesmos olhos e falei:

-Eu te amo irmã!- As duas falaram em conjunto.

Estávamos exatamente como a 3 anos atrás, sentadas naquele canto desalumiado do quarto, eu segurando suas mãos frígidas, e com uma voz trêmula tentando aliviar a sua dor.

-Kuraline, obrigad-- -

Pow! Pow! Pow!

Ouviram-se fortes batidas na porta trancada do quarto, degradê havia iniciado.

DegradêOnde histórias criam vida. Descubra agora