Se bem me lembrava, só precisaria comer o que estivesse dentro da caixinha para passar pela minúscula porta, então tirei o pó do meu blazer de baratas e fui em direção à caixa. Abri-a cuidadosamente e me deparei com um pequeno biscoito em formato de fechadura com os dizeres "ENFIE-ME" menores ainda, que só consegui ler graças á lupa de bronze que também estava na caixa.
Estranhei aquele comando no biscoito e o mordi cuidadosamente, como quem morde uma moeda pra saber se é mesmo composta por ouro maciço e percebi que aquilo era duro como diamante. Só então liguei os pontos e percebi que o "enfie-me" significava que eu deveria introduzir o biscoito na fechadura. As coisas realmente haviam mudado por ali e isso estava começando a ficar evidente.
Fui até a pequena porta e coloquei o biscoito ali a fazendo crescer instantaneamente, o que me fez dar alguns passos cautelosos para trás. Sem perder mais tempo girei a maçaneta e abri cuidadosamente a passagem mas o que vi em seguida me deixou em estado de choque. O lugar onde fui parar não se parecia em nada com as vagas lembranças de uma única visita que ainda restavam em meu subconsciente.
A floresta que esperava encontrar estava completamente queimada, só restavam estruturas negras de árvores e cinzas pelo chão e ainda havia vestígios de fumaça em alguns pontos, o jardim que tanto admirava foi pisoteado violentamente sabe se lá pelo que. Havia lodo em grande parte do terreno e o céu escuro só atenuava mais a paisagem tenebrosa que estava diante de mim. Eu particularmente gostava de locais assim meio macabros, mas me dava aflição pensar que um dia aquele local fora tão bonito e agora se encontrava nessa completa desordem.
Repentinamente ouvi barulhos estridentes vindos da sala em que eu estava momentos atrás e uma voz familiar chamando meu nome. Aquilo surtiu um efeito de pânico em mim que nem mesmo eu sabia explicar. Era como se alguém fosse me arrancar dali e o único reflexo que tive foi correr pra longe daquela porta em um instinto de sobrevivência.
Adentrei a vegetação destruída numa corrida insana, o que me resultou em alguns arranhões pelo corpo devido as pontas das árvores negras e quando soube que já estava longe o suficiente do ponto de origem, sentei-me ofegante em um grande cogumelo marrom com tons esverdeados no topo.
Enquanto recuperava o fôlego, reorganizei os pensamentos e logo um bombardeio de perguntas me atingiu. O que eu estava fazendo? Por quê decidi correr e pra onde iria agora? Tudo isso foi por causa de uma borboleta descomunal? Como eu voltaria pra casa? Aquele local era o mesmo de antigamente? Eu ainda estava vivo?
Nenhuma resposta me ocorreu e não havia mais ninguém ali que pudesse respondê-las então decidi seguir em frente, mesmo não tendo a mínima ideia de onde era a frente.
Depois de alguns minutos seguindo uma pequena trilha que, provavelmente, fora feita por animais (se é que ainda existiam formas de vida ali) cheguei à um túmulo e automaticamente minhas pernas paralisaram.
A sensação de medo foi vencida pela curiosidade e eu cheguei mais perto abaixando-me para analisar a lápide mas não havia nada escrito, apenas diversos dentes cravados no mármore o que era realmente muito estranho. Só não era mais estranho do que a risada que invadiu o local assim que toquei em um dos dentes.
Um coelho azul surgiu do nada flutuando em pequenos giros ao redor de si mesmo e gargalhando com as patas na barriga. Quando achei que aquela situação não poderia ficar mais fora do comum ele soltou, em meio as risadas, a pergunta:
- Procurando alguém?
Foi aí que me ocorreram fragmentos de memória e eu lembrei da imagem de um gato, tão risonho quanto o coelho em uma situação parecida com aquela, então ignorei os fatos de o coelho ser azul, flutuar, rir e falar e respondi com outra pergunta:
- Você não era um gato?
- Eu tenho cara de quem come ratos? - ele retrucou.
- É que eu...
- Escuta. - ele interrompeu - Se está procurando por um gato risonho é só olhar para baixo.
Olhei mas só vi terra e meus coturnos sujos de lama, mas logo percebi que o coelho se referia ao túmulo.
- Você... quer dizer que... - hesitei.
- Sim. - ele completou - Você está pisando nele.
Me afastei do coelho em risos na minha frente e balbuciei algo que ele cortou friamente:
- Como pode ter esquecido que matou o gato e cravou os dentes dele nessa lápide? - disse com um sorriso assustador.
Aquilo mexeu comigo de tal maneira e eu senti algo me apertando por dentro.
- Eu nunca matei ninguém, muito menos animais. - Me defendi nervosamente.
O coelho inclinou a cabeça pra esquerda e me olhou com expressão de dúvida. Logo, seu crânio saltou do corpo como se nunca fizera parte dele e veio rolando lentamente em minha direção. A situação já havia chegado à um ponto de bizarrice tão grande que eu ignorava tudo que fosse descomunal sabendo que sempre poderia ser superado por uma proeza mais incomum ainda. Seus olhos me olhavam fixamente como se me analisassem por dentro e ele finalmente quebrou o silêncio:
- Você não é mesmo o mesmo.
Fiquei confuso com tal afirmação. Ele perguntou se eu lembrava da minha última visita aquele local e prontamente respondi que pouquíssimas recordações me restavam dali.
- Pobre criança. - expressou em falso tom de pena - Venha. Já sei onde estão as respostas das suas perguntórias.
Supus que aquilo significasse "perguntas aleatórias". A cabeça do coelho retornara ao corpo e ele começou a saltitar por uma trilha que se completava a cada pulo que ele dava.
Enquanto o seguia, olhei para trás algumas vezes e vi a paisagem morta sumindo cada vez mais sendo engolida pela névoa.
- Como percebe, não temos tempo. Já é tarde. - O coelho havia quebrado o silêncio.
- Tarde para quê? - indaguei.
- A maluquice está ficando cada vez mais fraca por essas bandas. - Ele disse enquanto mexia seu pequeno nariz, como se farejasse algo.
- Fraca?? Tudo que vi até agora h
foge totalmente dos parâmetros da normalidade. - respondi.
Pela primeira vez o sorriso do coelho se desfez e ele me olhou profundamente dizendo:
- Esse é o problema, meu caro. - começou a falar enquanto dava uns últimos pulinhos - Você acha que já viu maluquice suficiente por aqui e isso não é normal. Está errado. Está uma desordem. E aqui já é o suficiente. - Finalizou parando em frente aos arbustos e abrindo caminho entre eles.
- O que tem aí? - Perguntei.
- Veja você mesmo. - Ele ofereceu.
Afastei a folhagem e observei o local indicado por ele.
- Aquilo... ali é... - Comecei a dizer aflito.
- Sim garoto. - Ele começou a rir e se dissolver junto a névoa. - Mais uma vítima sua. HAHAHAHAHA. - e desapareceu totalmente.
Não!
Aquilo não poderia ser o que eu pensava ser. Como podia ser mais uma vítima se eu nunca machuquei ninguém? O coelho sumiu sem ao menos explicar e para piorar, as memórias que me invadiam começaram a descer pelos olhos em forma de lágrima. Eu estava desesperado, minhas pernas não se mexiam por mais que eu quisesse me aproximar e o desespero tomava conta de mim.
Eu não fiz nada daquilo, não com ele. Só lembrei agora dele. Ele que foi o primeiro a realmente me compreender. Ele que foi o responsável pela parte boa da minha memória destruída. Eu não conseguia acreditar em nada daquilo, eu não queria acreditar em nada daquilo.
Uma enorme mesa de chá com bolos apodrecidos, biscoitos mofados, louças quebradas, cadeiras derrubadas e aquele corpo debruçado em sua extremidade.
Aquele corpo ensanguentado...
Ele estava ali e seu corpo ensanguentado...
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Harry In Disorderland
FanfictionQual é o limite que te mantém são? Harry narra seu conflito interno e a busca pela única coisa capaz de lhe devolver a sanidade. Mas e se nada disso fosse real? E se pra encontrar a felicidade a única saída fosse viver uma fantasia eterna? Harry In...