A vida passa na janela

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A VIDA PASSA PELA JANELA

"Com açúcar e com afeto, fiz seu doce predileto", mas você nunca mais voltou para casa. E eu, achando-me no auge do fracasso na vida, apenas coloquei o doce depois de frio num grande vidro redondo e fui para o computador. Minha vida era atrás dele, escrevendo a nova reportagem.

Lembrei na hora de você Aracelli, porque você sempre foi vitoriosa em tudo e eu passei a ser comum e medíocre ao seu lado, eu que me achava excepcional. Eu me lembro do seu jeito suave de falar e comandar, porém sempre firme em todas as atuas atitudes, aquela que sabia que era a mais inteligente entre nós 3, achando isso super natural, e eu era a segunda em tudo, eu, que estava acostumada a ser a primeira da classe, tirar dez em todas as matérias durante os 5 primeiros anos do ensino Fundamental I e agora engolia sempre o segundo lugar, por mais que estudasse e ainda piro do que isso, tinha engolir várias notas 9 e 9.5, porque o dez era sempre totalmente seu em tudo.

Sim, nós três, amigas de coração e colegas do ensino fundamental II, estudamos por 4 anos juntas, numa amizade tão forte que parecia que jamais iria esfriar ou terminar um dia. Eu, Felícia e você Aracelli, você nos ensinava sobre tudo, pose, postura, melhores músicas para ouvir, qual menino era o mais bonito da escola e merecia nossa atenção, como o Edson, louro, de lindos olhos cor de mel, que olhava para Felícia, sim, para ela, que tinha notas boas porque colava de nós, sem querer ter preconceito, mas ela era loura e geralmente só falava abobrinhas, mas tinha dinheiro de monte na bolsinha em forma de gato e pagava todos os lanches, quem ligava de ouvir abobrinhas? Mas também tinha seios maiores que nós, lindos lábios carnudos, loura natural, sorriso sempre na boca e vozinha melosa, como os rapazes gostavam. Quem olhava para nós Aracelli? Só o Manuel bolão, como todos chamavam, ela babava por mim e era seu vassalo, busque uma Coca-Cola, pegue meu lápis que caiu no chão, desligue o ventilador, apague o quadro, qualquer ordem sua, ele cumpria sem piscar e na hora do recreio sempre nos oferecia os biscoitos caseiros que a mãe dele fazia. Mas era gordinho demais, usava óculos de lentes grossas e era dentuço como a Mônica, que chance o pobre menino poderia ter com você?

Eu te imitava nas poses, nos brincos, nos laços de fita e prendedores de cabelo, no enrolar a saia do uniforme para cima para ficar mais curta e até fingia enaltecer o Edson, seu "deus" e capitão do time da escola, mas na verdade, sempre gostei do Elson seu irmão, que em segredo gostava de mim, mas você nunca me disse e ainda cortava a onda dele, insistindo com ele para não perder tempo porque eu era apaixonada pelo Edson como você. Ah, se eu soubesse disso naquela época eu teria casado com Marcondes?

Eu lembro que não tínhamos celular, nem existia e nós trocávamos todo dia bilhetinhos escritos porque não havia e-mail ou internet. E um dia, um desses bilhetinhos foi cair na mão do Edson, mas Felícia o recuperou e ainda o convenceu que não se tratava dele. A gente morria de inveja que ela tinha namorado, que ela namorava o Edson, coisa que nos matava por dentro, eu de inveja, você de ciúmes. Você foi a última de nós a usar sutiã, a segunda fui eu, sempre segunda em tudo, e a Felícia já usava desde o início da quinta série. Na formatura, o Edosn já tinha outro namorado e a Felícia, cujo boletim era cheio de 6 e 7, já estava no sétimo ou oitavo namorado. Você estava começando a namorar o Augusto com que estudaria Medicina e depois se casaria. Eu ainda sozinha, assim permaneci todo o tempo da faculdade de jornalismo na UFRJ. Felícia que a gente achava que seria modelo, casou um ano depois da formatura, fez o ensino médio a trancos e barrancos e quando nós duas nos formamos na faculdade, ela já tinha 3 filhos e esperava o quarto.

Eu trabalhava fazendo estágio no Jornal O Globo como era meu sonho, você fazendo residência, eu tinha tido somente um namoradinho, que me trocou por outra em 6 meses de namoro, você estava noiva de aliança e tinha marcado seu casamento. Você estava linda no dia do seu casamento, igreja, bolo, vestido, festa, tudo deslumbrante, enquanto eu casei somente no civil, e mesmo assim, uns cinco anos depois de você, já nos trinta anos. Você já tinha uma filhinha de 2 anos, no qual queridamente colocou meu nome, Melina, ato que me comoveu tanto.

No dia do seu casamento, eu vi seu irmão Elson novamente depois de muitos anos, ele ainda estava solteiro e parecia gostar muito do status, passou a noite conversando com todas as moças da festa e pulando de uma para outra e parecia propositadamente me evitar, até que eu levantei da minha mesa onde estava com Felícia e o marido dela, pois tinha ido sozinha e estava desacompanhada, e fui buscar um champagne. Elson estava pegando bebidas e ia passar direto por mim quando o chamei. Ele estancou e olhou para atrás, abriu um grande sorriso, foi tão gentil quanto frio e me senti pequena e desprezada sem saber explicar bem o porquê. Trocamos algumas palavras e ele se foi, eu ainda ofereci ajuda para carregar a bebidas que ele pegara, mas ele educadamente recusou e saiu o mais rápido que conseguiu.

Depois, na hora da despedida dos noivos para a viagem de lua-de-mel, no meio do conglomerado de convidados, eu esbarrei em Elson e ia caindo se ele não tivesse me segurado firme, e nós nos olhamos cara a cara por alguns segundos que pareceram uma eternidade. Agradeci e queria conversar mais, porém ele foi muito rápido novamente e desapareceu na multidão. Eu fiquei em pé no meio de toda aquela gente, mal vendo seu carro partir cheio de latas amarradas, batendo forte no chão, tais quais as batidas violentas do meu coração.

O tempo passou, conheci Marcondes, que era bonito, bom de lábia, e aproveitador, agora doce e bolo, mas me carregava o dinheiro e por 7 anos de casamento nunca arrumava empregou e me enganou com muitas amantes, que você tentava me dizer, mas eu não queria escutar. Nesse tempo, Aracelli, a gente quase não se via mais, Felícia teve câncer de mama, contra todas as expectativas, e nos deixou aos 36 anos e quatro filhinhos órfãos. Veio a internet e o celular, nós duas nos habituamos aos e-mails e whatsapp e nunca mais almoçamos juntas como nos tempos da faculdade. Você casada, cheia de plantões e consultório, eu correndo atrás de notícias e sempre atrás do computador escrevendo a nova matéria, com um sanduiche do lado e café esfriando no copo. Quem tinha tempo para sair e almoçar?

Então, descobri Marcondes com a amante e os desfalques no banco, ele chorou, trouxe dinheiro para me dar, pediu perdão, jurou fidelidade, e eu ainda apaixonada aceitei ele de volta e ele pouco parava em casa. Mesmo fazendo o doce predileto, mas ele continuou nas mesmas malandragens e por fim sumiu, achei foi bom, estávamos divorciados ainda e nem haveria trabalho de providenciar uma nova separação.

De início me achei um fracasso, e você, Aracelli, no auge da carreira, viajando para os EUA para expos suas novas descobertas. O tempo passou trazendo a resiliência e a paz. Por fim, eu me levantei da letargia, me sentindo livre e feliz de estar sozinha. Abri a janela e pela primeira vez me demorei olhando o vizinho do prédio em frente, que eu sabia que tinha vários gatos, que era arquiteto e estava sempre ouvindo música. Naquele dia, fiquei olhando um gato no parapeito da janela dele. Eu passei a vida olha pela janela da vida de Aracelli e nunca olhei pela minha própria janela, que tinha uma vista muito bonita. O gato era todo amarelo e lindo, eu o espiava de vez em quando, e como sempre amei bichos me quedei olhando por mais tempo do que antes fazia que era só por alguns momentos aquando abria as janelas pela manhã. Mas fiquei olhando detidamente até o que o dono veio pegá-lo. Elson? Morando aqui do lado e nunca me dei conta?

Então caprichei fazendo o melhor bolo que eu pude, e fui bater no apartamento dele no outro lado da rua. Ele estava em casa, olhou o bolo surpreso e então ele agradeceu. Eu percebi que não sabia o que dizer e fui embora. Elson, no dia seguinte, deixou um bilhete na portaria do meu prédio me convidando para jantar e deixando o número do telefone dele que nós nunca havíamos trocado. Eu escolhi meu vestido mais bonito, gastei a tarde no salão de beleza e passados vários meses, "com açúcar e com afeto, fiz seu doce predileto" e ele quando chega em casa, come tudo.

MARGARETE EDUL PRADO

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