— Vamos sair da estrada, vem. – Exclamou Ícaro, puxando Laura para fora do asfalto. Desceram o declive de piçarra, chegando até uma cerca que dava numa plantação de milho – ao menos parecia milho àquela hora da noite. Laura atravessou por entre os arames farpados com facilidade, dado seu corpo esguio e proporcional. O rapaz, por sua vez, teria dificuldades. Quando passou a primeira perna, sentiu sua bermuda prender nas farpas.
— Arg, que merda. – Resmungou Laura, já levantando sua blusa e retirando uma faca de uma pochete que carregava na cintura. — Sempre eu tenho que livrar dessas, não é?!
Se fosse há alguns meses ela largaria um xingamento como "rolha de poço" ou "elefante", mas sabia que aquilo seria o estopim para uma briga sem fim. Ícaro tinha problemas sérios com seu peso, baixa autoestima, e ambos resolveram isto num passado não muito distante.
— Me ajuda, Laura... Rápido! – Exclamou o rapaz, que tentava tirar desesperado o tecido preso. Nesse momento, o relinchar macabro irrompia na estrada. A mula-sem-cabeça retomava a consciência e o clarão já podia ser visto há poucos metros. Laura enfiava a ponta da faca – que tinha a lâmina grossa e um lado serrilhado, naquele modelo que ficou popular nos filmes do Rambo – na estaca mais próxima, no grampo que sustentava aquele arame inferior. Embora tivesse um tipo físico aparentemente tímido, Laura tinha força. Alguns segundos e o grampo saltou num estalo, liberando aquela fileira.
— Vai, acho que agora dá para passar. – Respondeu a mulher. Ícaro, por sua vez, esticava o fio com a farpa e puxava a calça, causando um corte que ia próximo da região da virilha até a barra da bermuda.
— Foda-se essa merda! Compro outra quando chegarmos à cidade! – Abaixou-se e mergulhou. Caiu de peito no chão, já dentro da plantação, e foi ajudado pela sua companheira a se levantar.
— Se não há como matá-la, como vamos deter essa mula? – Questionou Laura, já correndo por entre o milharal, abrindo caminho com sua faca numa mão e seu 38 na outra. — Napoleão bem que podia ter avisado antes... Sempre somos pegos de surpresa.
E, de fato, eram. Embora Napoleão e o órgão ao qual a dupla fazia parte tivessem os melhores radares para casos de quebra do "véu", a imprecisão destes acabava por deixar a jornada dos caçadores sempre um tiro no escuro. Muitas vezes, só tinham uma região a ser apontada e nada mais. Acabavam perdendo certo tempo viajando e investigando até descobrir o que, de fato, havia chegado do 'outro lado' para este plano. Para sorte deles (ou azar) não é todo dia que o ente em questão atravessava seu caminho.
— Pelo que bem me lembro, as mulas-sem-cabeça são maldições. Muito possivelmente alguém deve ter despertado o véu ao realizar algum rito que atraiu a sua aparição. Aquele cavalo na pista foi apenas a forma pré-aparição. Mas a julgar pelas chamas e pela voracidade, posso afirmar que esta maldição já deve estar solta há, pelo menos, quatro meses. Cada vez que a mula-sem-cabeça aparece, suas chamas se tornam maiores e sua velocidade também...
— É... dá para ver. – Um relincho macabro irrompe próximo onde ambos atravessaram do asfalto para a plantação. O clarão em meio ao milharal dá lugar a um incêndio que começa a se espalhar há cerca de quarenta metros de onde corriam. — Merda! – Laura definitivamente não tinha paciência para aquilo. Apressa o passo, enquanto Ícaro já bufava de cansaço pelas ventas. Suava como um porco e saberia que no dia seguinte, se não usasse um hipoglós, teria assaduras terríveis entre as pernas.
— Mpf, mpf... E-eu... N... Não... Aguen... – Quando pensava em desistir, diante de mais dois relinchos da besta, a dupla alcançou um clarão na plantação. Ali, a plantação tinha uma pausa, rondando uma casa. Nesta, um homem de pele escura com um chapéu de palha e um facão na mão, estava à porta. Na janela, podia se ver olhos curiosos.
— Quem são vocês?! – Indagou o homem, que carregava também uma barba grisalha grossa e encaracolada.
— Estamos fugindo daquela coisa ali... – Laura apontou para trás, a mula-sem-cabeça relinchava e abria caminho pondo fogo em todo seu caminho. Os olhos do homem arregalaram-se, embora não parecesse totalmente surpreso. Ícaro sequer tinha fôlego para falar.
— Entrem na casa, rápido. – O homem abaixou o facão, dando passagem para ambos. Os três entraram rapidamente e o homem fechou a porta, colocando a mesa da dala como bloqueio. Ao menos, por hora, estavam à salvo.
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Raízes das Lendas
FantasyO que é realidade? O que são lendas? Quando pequenos, nossas tias costumam nos contar histórias antigas, lendas do folclore sobre criaturas inimagináveis que escondem-se nas matas, rios, lagos, mares e até mesmo nas cidades. O que aconteceria se voc...